quinta-feira, 19 de junho de 2025

Fraude em Licitações – Visão Geral

 


1. Introdução

A licitação pública, enquanto instrumento de seleção objetiva de propostas mais vantajosas para a Administração, é um dos pilares da moralidade administrativa e da boa gestão dos recursos públicos. Contudo, sua vulnerabilidade a condutas desviantes é histórica e persistente, o que faz da fraude em licitações um dos mais graves e recorrentes problemas enfrentados pelo Estado brasileiro. A prática fraudulenta não apenas viola princípios como o da isonomia, da legalidade e da impessoalidade, mas compromete a finalidade pública do contrato e prejudica economicamente a coletividade.

2. Conceitos Básicos

Fraude, no contexto licitatório, pode ser conceituada como o conjunto de condutas dolosas que visam viciar o procedimento licitatório ou frustrar sua finalidade, conferindo vantagens indevidas a licitantes ou prejudicando a Administração Pública. Em outras palavras, é toda prática que busca burlar o procedimento isonômico, mediante a dissimulação, manipulação ou corrupção dos atos que compõem o certame.

A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) reforçou a preocupação com a integridade do processo licitatório, prevendo mecanismos de governança, transparência e responsabilização para mitigar condutas fraudulentas. Ainda assim, a fraude pode se manifestar de diversas formas e em distintas fases do procedimento.

3. Tipologia das Fraudes em Licitações

As fraudes em licitações são multifacetadas e podem ser sistematizadas a partir de três grandes categorias: fraudes anteriores ao certame, durante o certame e na execução contratual.

3.1. Fraudes na fase interna (antes da publicação do edital)

* Manipulação do edital: inserção de cláusulas restritivas à competitividade com o objetivo de favorecer determinado licitante (“direcionamento”).

* Desenho sob medida: especificações técnicas moldadas para beneficiar uma empresa previamente escolhida.

* Restrição geográfica ou de capacidades técnica e econômico-financeira desproporcionais.

* Direcionamento do edital: ocorre quando o edital de licitação é elaborado com cláusulas ou exigências que restringem indevidamente a competitividade, favorecendo previamente determinado licitante. Exemplos incluem exigência de qualificação técnica desproporcional, critérios subjetivos de avaliação ou especificações técnicas que apenas uma empresa consegue atender.

* Fragmentação indevida de despesa: para evitar a realização de licitação, pode-se fragmentar uma contratação em vários processos menores, cada um enquadrado como contratação direta, burlando o procedimento competitivo. 

3.2. Fraudes na fase externa (durante o certame)

* Conluio entre licitantes (cartel): acordo prévio para simular competição, com divisão de lotes ou rodízio de propostas.

* Uso de “laranjas”: empresas de fachada ou controladas pelo mesmo grupo simulam disputa para legitimar a vitória.

* Ofertas artificiais: proposta com valor irrisório com posterior aditamento no contrato.

* Suborno e corrupção de agentes públicos: manipulação de resultados em troca de vantagem indevida.

* Falsificação de documentos: apresentação de atestados técnicos ou certidões falsas para comprovar capacidade técnica ou regularidade fiscal.

* Simulação de regularidade: o licitante aparenta reunir condições legais e técnicas para participar do certame, mediante a apresentação de documentos falsos ou adulterados.

* Participação inabilitado: o licitante participa da licitação inabilitado em conjunto com o escolhido para vencer - habilitado, apenas para fazer número e para conferir um ar de legalidade ao procedimento.

* Manipulação de critérios de julgamento: quando a comissão de licitação, pregoeiro ou autoridade competente manipula o julgamento das propostas, atribuindo notas ou pontuações de forma parcial ou ilegítima, favorecendo ou prejudicando determinado concorrente.

* Vício na análise das propostas: inclui a aceitação de proposta manifestamente inexequível ou a desclassificação indevida de proposta vantajosa.

* Cartel ou ajuste prévio: empresas concorrentes combinam previamente quem será o vencedor do certame, definindo lances, valores ou até mesmo a abstenção de participação, com prejuízo à competitividade e ao interesse público.

* Abstenção de licitar: Algumas empresas desistem de participar ou retiram suas propostas para dar lugar a outra.

* Divisão de Mercado: Empresas dividem geograficamente ou por tipo de serviço as licitações que irão disputar.

* Fraude de cobertura: os concorrentes apresentam propostas fictícias, meramente para conferir aparência de competição, enquanto o verdadeiro vencedor já foi previamente definido.

* "Jogo de Planilha": manipulação da planilhas de preços para obter vantagens financeiras através da alteração indevida de quantitativos ou preços unitários em planilhas orçamentárias, muitas vezes superfaturando serviços ou produtos, onde o licitante subestima itens certos (ex: vale-transporte, equipamentos, uniforme, insumos obrigatórios); superestima itens variáveis ou compensáveis (ex: encargos sociais, tributos, ou lucro); apresenta percentuais fictícios ou distorcidos de encargos previdenciários ou trabalhistas; ou promete cumprir obrigações por valores irreais, esperando depois fazer reequilíbrios contratuais ou aditivos. 

3.3. Fraudes na fase de execução contratual

* Inexecução parcial ou total do objeto: Execução do contrato em desconformidade com o pactuado, com entrega de bens ou serviços de qualidade inferior, ou não entrega.

* Superfaturamento e sobrepreço: Elevação indevida dos preços contratados, seja mediante aditivos contratuais, medições fictícias ou alterações qualitativas e quantitativas do objeto contratual.

* Pagamentos indevidos: Inclui pagamentos por serviços não prestados ou bens não entregues, bem como pagamentos acima dos preços de mercado.

3.4. Fraudes Envolvendo Agentes Públicos

* Corrupção: Pagamento de propina ou outra vantagem indevida a servidores públicos para obtenção de favorecimento no processo licitatório.

* Conluio entre agentes públicos e privados: Quando agentes da Administração Pública, em conluio com empresas privadas, manipulam procedimentos licitatórios, promovendo fraudes desde o planejamento até a execução contratual.

4. Técnicas de Detecção de Fraudes

A detecção de fraudes em licitações é um desafio que exige uma combinação de ferramentas, análise de dados e expertise investigativa. As técnicas podem ser divididas em preventivas e reativas:

 

Técnicas Preventivas (Controles Internos e Auditoria)

* Análise de Dados e Cruzamento de Informações: Utilização de softwares e algoritmos para identificar padrões incomuns, como:

- Preços Anormalmente Elevados ou Baixos: Variações significativas em relação a preços de mercado ou de licitações anteriores.

- Frequência de Vitórias de uma Mesma Empresa: Uma empresa vencendo um número excessivo de licitações para um determinado órgão.

- Empresas com o Mesmo Endereço ou Sócios em Comum: Indício de empresas de "fachada" ou de conluio.

* Endereços ou Telefones Comuns entre Servidores e Licitantes: Sinal de possível proximidade ou vínculo indevido.

* Monitoramento Contínuo: Acompanhamento em tempo real dos processos licitatórios, desde a fase de planejamento até a execução do contrato.

* Auditorias Internas e Externas: Realização de auditorias periódicas e surpresa para verificar a conformidade dos processos com a legislação e os princípios éticos.

* Sistemas de Denúncia (Whistleblowing): Canais seguros e anônimos para que funcionários, fornecedores ou cidadãos possam reportar suspeitas de fraude.

* Due Diligence em Fornecedores: Verificação da idoneidade e da capacidade técnica e financeira das empresas que participam das licitações.

Técnicas Reativas (Investigação)

* Análise Forense de Documentos: Exame minucioso de documentos (editais, propostas, contratos, notas fiscais) para identificar falsificações, adulterações ou inconsistências.

* Entrevistas e Depoimentos: Coleta de informações junto a servidores, licitantes, testemunhas e outros envolvidos.

* Quebra de Sigilos (Bancário, Fiscal, Telefônico): Mediante autorização judicial, acesso a dados financeiros e de comunicação para rastrear fluxos de dinheiro e contatos indevidos.

* Análise de Rede Social e Relacionamentos: Mapeamento de ligações entre indivíduos e empresas por meio de dados públicos e de redes sociais.

* Perícias Técnicas: Avaliação de obras, serviços ou bens por especialistas para verificar a conformidade com o contratado e identificar superfaturamento ou serviços não prestados.

* Colaboração Premiada: Acordos com indivíduos envolvidos na fraude que se comprometem a fornecer informações relevantes em troca de benefícios legais.

5. Responsabilização em Casos de Fraude

A fraude em licitações enseja a responsabilização em múltiplas esferas: administrativa, civil e penal. A nova Lei nº 14.133/2021 e leis correlatas tratam com rigor tais práticas:

5.1. Esfera administrativa

* Sanções da Lei 14.133/21 (art. 156): impedimento de licitar e contratar com a Administração por até 3 anos, multa e declaração de inidoneidade.

* Registro no CEIS e CNEP: publicidade das sanções administrativas para efeito de controle e impedimento. 

5.2. Esfera civil

* Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992): atos dolosos com prejuízo ao erário e violação aos princípios da Administração (art. 10 e 11).

* Ações de ressarcimento ao erário e reparação de danos. 

5.3. Esfera penal

* Crimes licitatórios (arts. 337-E a 337-P do Código Penal): condutas como frustração do caráter competitivo, fraude à licitação, afastamento de licitante, e crime de contrato fraudulento.

* Corrupção ativa e passiva, peculato, associação criminosa, lavagem de dinheiro.

É importante observar que a responsabilidade pode atingir não apenas a pessoa jurídica, mas também os seus dirigentes, representantes legais e até servidores públicos coniventes.

6. Prevenção da Fraude em Licitações

A prevenção é, por excelência, a estratégia mais eficaz contra a fraude. Exige a construção de um sistema robusto de integridade institucional e mecanismos de controle.

6.1. Estruturas de governança e compliance

* Programas de integridade (compliance): exigidos pela Lei 14.133/21 (art. 25, §4º), especialmente em contratações de grande vulto.

* Políticas de prevenção à lavagem de dinheiro, conflito de interesses e due diligence de terceiros. 

6.2. Transparência e controle social

* Adoção de portais de transparência eficazes, com dados abertos, editais e contratos acessíveis, favorecendo o controle externo.

* Publicação de registros de sanções e histórico de empresas contratadas. 

6.3. Capacitação dos agentes públicos

* Investimento na formação técnica dos agentes de contratação, fiscais e gestores de contratos, para que estejam preparados a identificar e reagir a indícios de fraude.

6.4. Fortalecimento institucional

* Integração entre órgãos de controle interno e externo (TCU, CGU, MP, tribunais de contas locais), com ações coordenadas e bases compartilhadas.

* Criação de núcleos de integridade, com participação multidisciplinar.

7. Considerações Finais

A fraude em licitações compromete a confiança na Administração Pública e representa um dos principais fatores de ineficiência estatal e desperdício de recursos. Seu combate exige uma atuação integrada entre prevenção, detecção e responsabilização.

Mais do que medidas pontuais, é necessário promover uma mudança de cultura institucional, com foco em integridade, transparência e eficiência. A nova Lei de Licitações avança nesse sentido ao reforçar a necessidade de programas de integridade, governança e controle.

O enfrentamento da fraude deve ser contínuo, técnico e estratégico, sob pena de perpetuação de um modelo predatório que mina as bases do interesse público. Como ensina Marçal Justen Filho, “a licitação deve ser compreendida não como obstáculo à eficiência, mas como a garantia de que o poder será exercido dentro dos marcos da legalidade, da impessoalidade e da moralidade”.

Um comentário:

  1. Esclarecemos que o destaque em vermelho, no item 4 (Análise de Dados e Cruzamento de Informações), ocorreu de forma aleatória, por conta de uma falha da própria plataforma do blog, sem qualquer interferência ou intenção deliberada. O conteúdo em questão não foi marcado propositalmente nem tem o objetivo de conferir ênfase especial, crítica ou advertência.

    ResponderExcluir

Comente! Expresse a sua opinião!