1. Introdução
A licitação pública, enquanto instrumento de seleção objetiva de propostas mais vantajosas para a Administração, é um dos pilares da moralidade administrativa e da boa gestão dos recursos públicos. Contudo, sua vulnerabilidade a condutas desviantes é histórica e persistente, o que faz da fraude em licitações um dos mais graves e recorrentes problemas enfrentados pelo Estado brasileiro. A prática fraudulenta não apenas viola princípios como o da isonomia, da legalidade e da impessoalidade, mas compromete a finalidade pública do contrato e prejudica economicamente a coletividade.
2. Conceitos Básicos
Fraude, no contexto licitatório, pode ser conceituada como o conjunto de condutas dolosas que visam viciar o procedimento licitatório ou frustrar sua finalidade, conferindo vantagens indevidas a licitantes ou prejudicando a Administração Pública. Em outras palavras, é toda prática que busca burlar o procedimento isonômico, mediante a dissimulação, manipulação ou corrupção dos atos que compõem o certame.
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) reforçou a preocupação com a integridade do processo licitatório, prevendo mecanismos de governança, transparência e responsabilização para mitigar condutas fraudulentas. Ainda assim, a fraude pode se manifestar de diversas formas e em distintas fases do procedimento.
3. Tipologia das Fraudes em Licitações
As fraudes em licitações são multifacetadas e podem ser sistematizadas a partir de três grandes categorias: fraudes anteriores ao certame, durante o certame e na execução contratual.
3.1. Fraudes na fase interna (antes da publicação do edital)
* Manipulação do edital: inserção de cláusulas restritivas à competitividade com o objetivo de favorecer determinado licitante (“direcionamento”).
* Desenho sob medida:
especificações técnicas moldadas para beneficiar uma empresa previamente escolhida.
* Restrição
geográfica ou de capacidades técnica e econômico-financeira desproporcionais.
* Direcionamento do
edital: ocorre quando o edital de licitação é
elaborado com cláusulas ou exigências que restringem indevidamente a
competitividade, favorecendo previamente determinado licitante. Exemplos
incluem exigência de qualificação técnica desproporcional, critérios subjetivos
de avaliação ou especificações técnicas que apenas uma empresa consegue
atender.
* Fragmentação indevida de despesa: para evitar a realização de licitação, pode-se fragmentar uma contratação em vários processos menores, cada um enquadrado como contratação direta, burlando o procedimento competitivo.
3.2. Fraudes na fase externa (durante o certame)
* Conluio entre licitantes (cartel): acordo prévio para simular competição, com divisão de lotes ou rodízio de propostas.
* Uso de
“laranjas”: empresas de fachada ou controladas pelo mesmo
grupo simulam disputa para legitimar a vitória.
* Ofertas
artificiais: proposta com valor irrisório com posterior
aditamento no contrato.
* Suborno e
corrupção de agentes públicos: manipulação de resultados
em troca de vantagem indevida.
* Falsificação de
documentos: apresentação
de atestados técnicos ou certidões falsas para comprovar capacidade técnica ou
regularidade fiscal.
* Simulação de
regularidade: o licitante aparenta reunir condições legais e
técnicas para participar do certame, mediante a apresentação
de documentos falsos ou adulterados.
* Participação
inabilitado: o licitante participa
da licitação inabilitado em conjunto com o escolhido para vencer - habilitado,
apenas para fazer número e para conferir um ar de legalidade ao procedimento.
* Manipulação de
critérios de julgamento: quando a
comissão de licitação, pregoeiro ou autoridade competente manipula o julgamento
das propostas, atribuindo notas ou pontuações de forma parcial ou ilegítima,
favorecendo ou prejudicando determinado concorrente.
* Vício na análise
das propostas: inclui a
aceitação de proposta manifestamente inexequível ou a desclassificação indevida
de proposta vantajosa.
* Cartel ou ajuste
prévio: empresas
concorrentes combinam previamente quem será o vencedor do certame, definindo
lances, valores ou até mesmo a abstenção de participação, com prejuízo à
competitividade e ao interesse público.
*
Abstenção de licitar: Algumas empresas desistem de
participar ou retiram suas propostas para dar lugar a outra.
* Divisão de Mercado: Empresas
dividem geograficamente ou por tipo de serviço as licitações que irão disputar.
* Fraude de
cobertura: os
concorrentes apresentam propostas fictícias, meramente para conferir aparência
de competição, enquanto o verdadeiro vencedor já foi previamente definido.
* "Jogo de Planilha": manipulação da planilhas de preços para obter vantagens financeiras através da alteração indevida de quantitativos ou preços unitários em planilhas orçamentárias, muitas vezes superfaturando serviços ou produtos, onde o licitante subestima itens certos (ex: vale-transporte, equipamentos, uniforme, insumos obrigatórios); superestima itens variáveis ou compensáveis (ex: encargos sociais, tributos, ou lucro); apresenta percentuais fictícios ou distorcidos de encargos previdenciários ou trabalhistas; ou promete cumprir obrigações por valores irreais, esperando depois fazer reequilíbrios contratuais ou aditivos.
3.3. Fraudes na fase de execução contratual
* Inexecução parcial ou total do objeto: Execução do contrato em desconformidade com o pactuado, com entrega de bens ou serviços de qualidade inferior, ou não entrega.
* Superfaturamento
e sobrepreço: Elevação indevida dos preços contratados, seja
mediante aditivos contratuais, medições fictícias ou alterações qualitativas e
quantitativas do objeto contratual.
* Pagamentos indevidos: Inclui
pagamentos por serviços não prestados ou bens não entregues, bem como
pagamentos acima dos preços de mercado.
3.4. Fraudes
Envolvendo Agentes Públicos
* Corrupção: Pagamento de propina ou outra vantagem indevida a servidores públicos
para obtenção de favorecimento no processo licitatório.
* Conluio entre agentes públicos e privados: Quando
agentes da Administração Pública, em conluio com empresas privadas, manipulam
procedimentos licitatórios, promovendo fraudes desde o planejamento até a
execução contratual.
4. Técnicas de Detecção de Fraudes
A detecção de fraudes em licitações é um desafio que exige uma combinação de ferramentas, análise de dados e expertise investigativa. As técnicas podem ser divididas em preventivas e reativas:
Técnicas Preventivas (Controles
Internos e Auditoria)
* Análise de Dados e Cruzamento de Informações: Utilização de softwares e algoritmos para identificar padrões incomuns, como:
-
Preços Anormalmente Elevados ou Baixos: Variações
significativas em relação a preços de mercado ou de licitações anteriores.
-
Frequência de Vitórias de uma Mesma Empresa:
Uma empresa vencendo um número excessivo de licitações para um determinado
órgão.
-
Empresas com o Mesmo Endereço ou Sócios em Comum:
Indício de empresas de "fachada" ou de conluio.
* Endereços ou Telefones Comuns
entre Servidores e Licitantes: Sinal de
possível proximidade ou vínculo indevido.
* Monitoramento Contínuo:
Acompanhamento em tempo real dos processos licitatórios, desde a fase de
planejamento até a execução do contrato.
* Auditorias
Internas e Externas: Realização de auditorias periódicas e surpresa para
verificar a conformidade dos processos com a legislação e os princípios éticos.
*
Sistemas de Denúncia (Whistleblowing): Canais
seguros e anônimos para que funcionários, fornecedores ou cidadãos possam
reportar suspeitas de fraude.
* Due Diligence em Fornecedores:
Verificação da idoneidade e da capacidade técnica e financeira das empresas que
participam das licitações.
Técnicas Reativas (Investigação)
* Análise Forense de Documentos: Exame minucioso de documentos (editais, propostas, contratos, notas fiscais) para identificar falsificações, adulterações ou inconsistências.
*
Entrevistas e Depoimentos: Coleta de
informações junto a servidores, licitantes, testemunhas e outros envolvidos.
*
Quebra de Sigilos (Bancário, Fiscal, Telefônico):
Mediante autorização judicial, acesso a dados financeiros e de comunicação para
rastrear fluxos de dinheiro e contatos indevidos.
*
Análise de Rede Social e Relacionamentos:
Mapeamento de ligações entre indivíduos e empresas por meio de dados públicos e
de redes sociais.
*
Perícias Técnicas: Avaliação de obras, serviços ou bens
por especialistas para verificar a conformidade com o contratado e identificar
superfaturamento ou serviços não prestados.
* Colaboração Premiada:
Acordos com indivíduos envolvidos na fraude que se comprometem a fornecer
informações relevantes em troca de benefícios legais.
5. Responsabilização em Casos de Fraude
A fraude em licitações enseja a responsabilização em múltiplas esferas: administrativa, civil e penal. A nova Lei nº 14.133/2021 e leis correlatas tratam com rigor tais práticas:
5.1. Esfera administrativa
* Sanções da Lei 14.133/21 (art. 156): impedimento de licitar e contratar com a Administração por até 3 anos, multa e declaração de inidoneidade.
* Registro no CEIS e CNEP: publicidade das sanções administrativas para efeito de controle e impedimento.
5.2. Esfera civil
* Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992): atos dolosos com prejuízo ao erário e violação aos princípios da Administração (art. 10 e 11).
* Ações de ressarcimento ao erário e reparação de danos.
5.3. Esfera penal
* Crimes licitatórios (arts. 337-E a 337-P do Código Penal): condutas como frustração do caráter competitivo, fraude à licitação, afastamento de licitante, e crime de contrato fraudulento.
* Corrupção ativa e passiva, peculato, associação
criminosa, lavagem de dinheiro.
É importante observar que a responsabilidade pode atingir não apenas a pessoa jurídica, mas também os seus dirigentes, representantes legais e até servidores públicos coniventes.
6. Prevenção da Fraude em Licitações
A prevenção é, por excelência, a estratégia mais eficaz contra a fraude. Exige a construção de um sistema robusto de integridade institucional e mecanismos de controle.
6.1. Estruturas de governança e compliance
* Programas de integridade (compliance): exigidos pela Lei 14.133/21 (art. 25, §4º), especialmente em contratações de grande vulto.
* Políticas de prevenção à lavagem de dinheiro, conflito de interesses e due diligence de terceiros.
6.2. Transparência e controle social
* Adoção de portais de transparência eficazes, com dados abertos, editais e contratos acessíveis, favorecendo o controle externo.
* Publicação de registros de sanções e histórico de empresas contratadas.
6.3. Capacitação dos agentes públicos
* Investimento na formação técnica dos agentes de contratação, fiscais e gestores de contratos, para que estejam preparados a identificar e reagir a indícios de fraude.
6.4. Fortalecimento institucional
* Integração entre órgãos de controle interno e externo (TCU, CGU, MP, tribunais de contas locais), com ações coordenadas e bases compartilhadas.
* Criação de núcleos de integridade, com
participação multidisciplinar.
7. Considerações Finais
A fraude em licitações compromete a confiança na Administração Pública e representa um dos principais fatores de ineficiência estatal e desperdício de recursos. Seu combate exige uma atuação integrada entre prevenção, detecção e responsabilização.
Mais do que medidas pontuais, é necessário promover uma mudança de cultura institucional, com foco em integridade, transparência e eficiência. A nova Lei de Licitações avança nesse sentido ao reforçar a necessidade de programas de integridade, governança e controle.
O enfrentamento da fraude deve ser contínuo, técnico e estratégico, sob pena de perpetuação de um modelo predatório que mina as bases do interesse público. Como ensina Marçal Justen Filho, “a licitação deve ser compreendida não como obstáculo à eficiência, mas como a garantia de que o poder será exercido dentro dos marcos da legalidade, da impessoalidade e da moralidade”.
Esclarecemos que o destaque em vermelho, no item 4 (Análise de Dados e Cruzamento de Informações), ocorreu de forma aleatória, por conta de uma falha da própria plataforma do blog, sem qualquer interferência ou intenção deliberada. O conteúdo em questão não foi marcado propositalmente nem tem o objetivo de conferir ênfase especial, crítica ou advertência.
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