segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Ordens Ilegais na Contratação Pública: O Silêncio Cúmplice do Abuso de Autoridade

 


A atuação do servidor público em licitações e contratos não é um exercício de obediência cega. É, antes de tudo, um ato de responsabilidade e vigilância. A ordem hierárquica, pilar da estrutura administrativa, cede em face da ordem jurídica. Quando confrontado com um comando que macula a legalidade, o servidor se vê diante de um ponto de ruptura. O que fazer? A resposta não é o confronto direto e imprudente, mas a estratégia inteligente e documentada.

O primeiro passo, e o mais vital, é a formalização da divergência. O servidor não deve jamais acatar a ordem ilegal verbalmente e, em silêncio, tornar-se cúmplice. A lei exige que ele seja um "guardião da legalidade". Deve utilizar os instrumentos internos da Administração para registrar a ordem e, de forma coesa e justificada, apontar sua impropriedade.

1. A Formalização da Ordem Superior

Aja com precisão cirúrgica. Se a ordem foi verbal, o servidor deve, imediatamente, redigir um memorando interno dirigido à autoridade superior. Este documento não é um ato de insubordinação, mas uma diligência. Nele, o servidor deve:

* Identificar a ordem e a autoridade que a emitiu: "Em referência à ordem verbal de V. Sa. de [data], para que [descreva a ordem, por exemplo, ‘dispense a fase de pesquisa de preços em um processo de contratação direta’]."

* Fundamentar a ilegalidade: "Em análise, constato que a referida ordem contraria o disposto no artigo 72, II, da Lei nº 14.133/2021, que exige a elaboração de estimativa de preços da contratação. A ausência de tal etapa compromete a competitividade e a vantajosidade da contratação, em desacordo com o princípio da economicidade."

Ao enviar este memorando, o servidor cria uma "cápsula do tempo", um registro documental que transfere o ônus da responsabilidade para a autoridade que, ciente dos riscos, insiste no comando ilegal. Essa é a primeira e mais eficaz linha de defesa.

2. O Instrumento da Representação Formal

Se a ordem for reiterada, a representação formal é o próximo passo. A Lei nº 8.112/1990 é cristalina em seu art. 116, que prevê o dever do servidor de "levar as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo ao conhecimento da autoridade superior ou, quando houver suspeita de envolvimento desta, ao conhecimento de outra autoridade competente". Esta é a bússola que orienta a conduta do agente público.

No âmbito de licitações e contratos, a representação deve ser endereçada aos órgãos de controle interno (Corregedoria, Auditoria Interna) e, em casos de maior gravidade, aos órgãos de controle externo, como o Tribunal de Contas (TC) do Estado  ou da União e o Ministério Público (MP) Federal ou Estadual, conforme o caso. Essa ação, embora drástica, é a única garantia de que o servidor não será responsabilizado por omissão.

3. O Exame de Conscientização da Ilegalidade

A recusa de uma ordem não pode ser arbitrária. Ela exige um juízo de valor. O servidor deve ser capaz de distinguir a ilegalidade manifesta da mera discordância técnica. A ilegalidade é manifesta quando sua violação à norma é evidente, como a tentativa de dispensar um procedimento licitatório sem que o caso se enquadre em uma das hipóteses legais previstas no art. 75 da Lei nº 14.133/2021.

Há que se ponderar, pois, que a recusa em cumprir a ordem ilegal deve se dar de forma amplamente justificada ou motivada.

Além de proteger o servidor, a justificativa da recusa contribui para a moralidade administrativa. Um superior hierárquico que emite ordens ilegais pode estar agindo em interesse próprio ou de terceiros, em detrimento do interesse público. A recusa justificada, ao ser formalizada, cria um registro que pode ser utilizado em investigações internas ou externas, expondo a conduta inadequada e garantindo que o ato ilegal não seja executado. É uma forma de o servidor cumprir com sua responsabilidade cívica e profissional de defender o patrimônio e os princípios que regem a administração pública.

A obediência, nesse caso, não pode ser justificativa. A Lei nº 8.112/1990, em seu art. 116, IV, é inequívoca:

"Art. 116. São deveres do servidor:

(...)

IV - cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais;

(...)”

A redação do dispositivo é um farol que ilumina o caminho da prudência. A obediência não é uma virtude quando submissa à ilegalidade.

4. Análise de Jurisprudência Recente

Consultas a bancos de jurisprudência do TCU, STJ e STF para encontrar acórdãos recentes que tratem especificamente da defesa do servidor que se recusa a cumprir uma ordem ilegal, com o objetivo de demonstrar a responsabilidade da autoridade que a emitiu e não do subordinado, não retornaram resultados específicos. A jurisprudência, em sua maioria, foca na responsabilização dos agentes públicos que praticaram a ilegalidade, sem entrar no mérito do mecanismo de defesa do servidor que se recusou a obedecer. Ou seja, a jurisprudência, tanto do TCU quanto do STJ, aborda a questão, porém, a maioria dos acórdãos recentes concentra-se na responsabilização de gestores e não diretamente na defesa do servidor subordinado que se recusa a cumprir a ordem.

A ausência de jurisprudência específica, entretanto, não é um vácuo, mas uma confirmação da tese. A lei já é clara. A jurisprudência, ao responsabilizar os agentes públicos por suas ilegalidades, reforça o dever de agir com diligência e de não se eximir da responsabilidade. A melhor forma de não ser responsabilizado por um ilícito é, por princípio, não praticá-lo.

O servidor público, munido de conhecimento técnico e amparado pela lei, não é um peão no tabuleiro burocrático, mas um verdadeiro agente de transformação. Sua defesa reside na documentação impecável, na fundamentação jurídica robusta e na recusa ética e inabalável a qualquer ordem que se desvie do caminho da legalidade.

5. Reiterando as recomendações

Infelizmente, é comum que o superior hierárquico emita ordens meramente verbais (não formaliza; não escreve) para os seus subordinados, visto que desta forma, não deixa rastro das ordens emitidas. Assim, ele se blinda contra eventuais auditorias externas (TCs), criando uma lacuna no histórico do processo de contratação.

Acredito que esse seja o principal desafio enfrentado pelos servidores públicos que atuam na linha de frente (pregoeiros, membros de comissão de licitação, fiscais e gestores de contrato etc.), colocando os seus CPFs em rota de colisão com os tribunais de contas.

Eis algumas situações que podem ser citadas:

a) determinação ao agente de contratação para restringir a publicidade do edital para que apenas alguns fornecedores fiquem cientes da licitação;

b) determinação ao agente de contratação para criar um Termo de Referência ou um Projeto Básico com exigências excessivas, que somente uma empresa específica consegue cumprir;

c) determinação ao agente de contratação para contratar diretamente a empresa “X”, mesmo que a situação não se enquadre nas hipóteses de dispensa ou inexigibilidade;

d) determinação à comissão ou ao pregoeiro para habilitar/inabilitar ou classificar/desclassificar determinada licitante;

e) determinação à comissão ou ao pregoeiro para “fechar os olhos” para determinada exigência editalíca ou para imprimir rigor desproporcional ao julgamento;

f) determinação ao fiscal de contrato para autorizar a execução de serviços desacobertados de termo aditivo ou com termo aditivo com justificativa insuficiente;

g) determinação ao fiscal de contrato para atestar a prestação de serviço ou a entrega do material, mesmo que a empresa não tenha cumprido o contrato;

h) determinação ao fiscal do contrato para alterar as especificações técnicas no meio do processo de contratação para favorecer determinada empresa;

i) determinação ao gestor do contrato para não aplicar as penalidades previstas no contrato, como multas ou impedimento de licitar e contratar, mesmo sabendo que a empresa não cumpriu o prazo ou o escopo do serviço;

j) determinação ao gestor do contrato para conceder o reequilíbrio econômico-financeiro para a empresa “X”, mesmo que ela não comprove os fatos supervenientes e imprevisíveis e nenhum dos requisitos necessários à concessão;

k) determinação ao ordenador de despesa para autorizar a realização de pagamentos por serviços não executados ou mal feitos.

A sugestão para esses casos é bastante simples: PREENCHA A LACUNA!!! Ou seja, conforme já ressaltado, formalize a ordem verbal, emitindo um documento (memorando ou e-mail) para o seu superior, relatando que “em relação à ordem (...descrever minuciosamente a ordem...), emitida verbalmente em ___/___/___, após as diligências necessárias, esclarecemos que as providências cabíveis serão adotadas no prazo de ___ dias [ou: após as diligências necessárias, esclarecemos que não poderemos atendê-lo, visto que a sua determinação viola frontalmente a regra insculpida no(s) art(s). .... da Lei ....(Lei 14.133/2021, Lei 9.784/1999, Lei 4.320/1964, Lei 8.112/90, Lei Complementar 123/2006, o princípio da(o) (...) etc)]....”. Se possível, cite doutrina e jurisprudência aplicáveis a fim de conferir maior credibilidade aos seus argumentos. Em síntese, justifique ou motive a sua recusa com a necessária robustez.

Mas não basta essa simples comunicação. O servidor deve ser firme e persistente em sua recusa.

A firmeza na recusa é o primeiro passo para o servidor se resguardar. Ao receber uma ordem verbal ilegal, é crucial que o servidor não hesite. A hesitação pode ser interpretada como aquiescência ou insegurança, o que pode encorajar a chefia a insistir na ilegalidade. A persistência é a etapa que transforma a firmeza em segurança jurídica. A ordem ilegal, por ser verbal, não deixa rastros. O servidor, portanto, precisa ser persistente na sua formalização.

É importante destacar que a formalização das ocorrências é de extrema importância para o servidor, visto que esses documentos constituirão provas de sua atuação.

O registro da ocorrência, por meio de canais oficiais como e-mail, memorando ou sistemas eletrônicos de comunicação interna, confere ao ato a publicidade e a materialidade necessárias. Ele serve como prova documental de que o servidor se opôs à ordem ilegal e que cumpriu seu dever de zelar pela legalidade e moralidade administrativa. Isso fortalece a posição do servidor em eventual processo administrativo disciplinar ou ação judicial, protegendo-o de retaliações ou de ser responsabilizado por uma ordem que não partiu dele.

Ao agir desta forma, o superior hierárquico não poderá agir contra o servidor, visto que a formalização da ordem transfere a responsabilidade para a autoridade superior. Ao documentar a ordem verbal e as razões para a sua recusa, o servidor cria uma prova material irrefutável de sua diligência e prudência.

Juridicamente, esse ato de formalização serve a dois propósitos fundamentais:

1. Exclusão da Responsabilidade do Subordinado

O ato de formalizar a ordem verbal e as justificativas para sua recusa, com base em dispositivos legais, coloca o servidor sob o manto da legalidade. Se a ordem for manifestamente ilegal, a recusa se ampara no artigo 116, inciso IV, da Lei nº 8.112/1990, que exime o servidor do dever de cumprir ordens que "manifestamente ilegais". Ao documentar a ilegalidade, o servidor demonstra que agiu em conformidade com o seu dever legal, protegendo-se de acusações de desobediência ou de cumplicidade. A responsabilidade por qualquer dano ou irregularidade recai, então, sobre a autoridade que, ciente dos riscos, insistiu na ordem.

2. Prevenção de Abuso de Autoridade

A formalização serve como um mecanismo de "cheques e balanças" (sistema de freios e contrapesos). Ao ser confrontado com um documento que expõe a ilegalidade de sua ordem, o superior hierárquico é forçado a refletir sobre a legalidade de sua ação. A documentação torna a ordem pública dentro da esfera administrativa, sujeitando-a à análise de outros servidores e, eventualmente, dos órgãos de controle. Isso inibe a prática de ordens ilícitas e protege o servidor de uma possível retaliação, já que a negativa ou a punição injustificada a ele poderiam ser interpretadas como abuso de autoridade, passível de sanção.

Em essência, a formalização transforma a ordem verbal e obscura em um ato administrativo transparente e verificável, o que é a essência da legalidade e da publicidade na Administração Pública.

Para a autoridade superior, a emissão de uma ordem ilegal que é cumprida pelo subordinado pode resultar em uma pena agravada. Já para o subordinado que a cumpre, a pena pode ser abrandada, pois a obediência a uma ordem de autoridade superior é considerada um fator atenuante.

Mas com pena abrandada ou não, fato é que ninguém quer ser penalizado, não é mesmo?

O servidor público não deve se dobrar às ordens ilegais. Antes de tudo, ele precisa se conscientizar que o mundo é regido por leis! É preciso se conscientizar que as mesmas leis que condenam o servidor, o resguardam.

Cabe registrar que também em relação às ordens verbais LEGAIS é conveniente que se “preencha a lacuna” (formalizar a ordem verbal), a fim de se evitar futuros questionamentos sobre os procedimentos adotados (realizados por determinação legal do superior), visto que uma ordem produz reflexos de toda natureza (econômica, financeira, patrimonial, temporal, política, social etc.).

6. Fundamentação Jurídica para a Denúncia

Por fim, impende ponderar que a necessidade de denunciar ordens ilegais encontra amparo nas seguintes normas:

* Lei nº 8.112/90: Em seu artigo 116, inciso VI, a lei impõe o dever de "levar ao conhecimento da autoridade superior as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo". Essa é a base legal para a denúncia interna. O servidor não apenas pode, mas deve informar as ilegalidades.

* Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa): A inércia diante de uma ilegalidade pode caracterizar omissão, o que, dependendo do caso, pode levar a uma responsabilização por ato de improbidade, especialmente se o ato resultar em prejuízo ao erário ou violar princípios administrativos. A denúncia, portanto, é um mecanismo de defesa do próprio servidor.

Portanto, o servidor que se depara com uma ordem ilegal está em uma encruzilhada moral e legal. O caminho correto e mais seguro é a recusa seguida da denúncia. A lei que o poderia punir por acatar uma ordem ilícita é a mesma que o protegerá por ter agido com probidade e coragem.

7. Quadro-Resumo – A salvaguarda do servidor


Etapa

Ação do Servidor

Fundamentação Legal

1. Análise

Avaliar a legalidade da ordem, identificando a manifesta ilegalidade ou a sua contrariedade aos princípios da Administração Pública.

Princípio da Legalidade (Art. 37, caput, CF/88)

2. Formalização

Formalizar a ordem por escrito (e-mail, memorando).

Princípio da Publicidade (Art. 37, caput, CF/88) e Risco de responsabilização por ordem verbal (jurisprudência do TCU)

3. Objeção

Elaborar uma justificativa ou exposição de motivos, expondo as razões da discordância e demonstrando a ilegalidade da ordem.

Dever de cumprir a lei e de não cumprir ordem manifestamente ilegal (Art. 116, IV, Lei nº 8.112/90) e Princípio da Eficiência (Art. 37, caput, CF/88)

4. Representação

Levar a questão ao conhecimento de autoridade superior competente, da auditoria interna, da CGU, do TCU ou do MP.

Dever de levar irregularidades ao conhecimento das autoridades (Art. 116, VI, Lei nº 8.112/90) e Dever de lealdade à instituição.

 

2 comentários:

  1. Tema contemporâneo e muito afeito aos Servidores Públicos em especial aos Agentes de Contratação. Penso que em breve poderá haver um enxame desses levantes contra o abuso de autoridade.
    Como sempre, o Dr. Leonardo resumiu e sintetizou as raras experiências em que Servidores se valeram da lei para não obedecer a seus superiores, agentes públicos ou políticos. Parabéns novamente!

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