quarta-feira, 4 de junho de 2025

Prorrogação e Renovação de Contratos de Prestação de Serviços Contínuos

 


Introdução


A continuidade da atividade administrativa e empresarial frequentemente depende da prestação ininterrupta de determinados serviços, caracterizados como contínuos. Estes, por sua natureza intrínseca de atenderem a necessidades permanentes ou de longa duração das organizações, demandam um tratamento contratual específico, especialmente no que tange à extensão de sua vigência. A prorrogação ou renovação de contratos de serviços contínuos emerge, assim, como um instrumento de gestão crucial, permitindo a manutenção da operacionalidade e, potencialmente, a otimização de recursos ao evitar sucessivos e dispendiosos processos licitatórios ou de seleção. Contudo, tal faculdade não é ilimitada, submetendo-se a um plexo de requisitos rigorosos que visam assegurar a vantajosidade para o contratante, a isonomia, a eficiência e a observância do interesse público ou organizacional.


1. Definição e Delimitação de Serviços Contínuos


Preliminarmente, a exata compreensão do que constitui um "serviço contínuo" é imprescindível. Serviços contínuos são aqueles que, por sua essencialidade, exigem uma execução prolongada e ininterrupta para satisfazer necessidades públicas ou privadas permanentes. Sua interrupção implicaria grave prejuízo à operacionalidade da entidade contratante ou à coletividade. Exemplificam-se por serviços de limpeza, conservação, vigilância patrimonial, manutenção de equipamentos e infraestrutura, suporte técnico em tecnologia da informação, copeiragem, entre outros. A Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos do Brasil), em seu art. 6º, inciso XV, define serviços e fornecimentos contínuos como aqueles "contratados pela Administração Pública para a manutenção da atividade administrativa, decorrentes de necessidades permanentes ou prolongadas". Esta definição legal, embora específica para o setor público, reflete a natureza intrínseca desses serviços.


2. Distinções Terminológicas: Prorrogação versus Renovação


No léxico jurídico e administrativo, os termos "prorrogação" e "renovação" contratual, embora frequentemente interligados, podem apresentar sutilezas conceituais.

Ø  Prorrogação Contratual: Traduz-se, em regra, na dilação do prazo de vigência de um contrato preexistente, mantendo-se as cláusulas e condições originárias, salvo aquelas expressamente passíveis de alteração por previsão legal ou contratual (como reajustes de preços). Configura-se como uma continuidade do mesmo instrumento jurídico.

 

Ø  Renovação Contratual: Pode, em alguns contextos, sugerir uma reavaliação mais ampla das bases contratuais, podendo até mesmo ensejar a celebração de um novo pacto, ainda que com o mesmo contratado. No âmbito dos contratos de serviços contínuos do setor público brasileiro, a "renovação" é comumente tratada como prorrogações sucessivas do prazo de vigência, desde que observados os limites e requisitos legais.

A Lei nº 14.133/2021, por exemplo, em seu art. 106, estabelece que a Administração poderá celebrar contratos de serviços contínuos por até 5 anos, e o art. 107 permite prorrogações sucessivas até o limite de 10 anos, desde que demonstrada a vantajosidade.


3. Requisitos Materiais para a Extensão Contratual


A decisão de prorrogar ou renovar um contrato de serviço contínuo é um ato administrativo vinculado, exigindo a comprovação de um conjunto de pressupostos:

Ø  Previsão Expressa no Edital ou Contrato: É fundamental que o instrumento convocatório da licitação (edital) e o contrato original contenham cláusula que preveja a possibilidade de prorrogação do prazo de vigência. A ausência dessa previsão pode constituir óbice formal, embora algumas correntes doutrinárias e jurisprudenciais possam mitigar tal rigor se a natureza do serviço e a legislação aplicável o permitirem.

 

Ø  Demonstração de Vantajosidade para o Contratante: Este é, porventura, o requisito mais crucial. A entidade contratante deve comprovar, de forma robusta e documentada, que a manutenção do contrato existente é técnica e economicamente mais vantajosa do que a realização de um novo certame.


·           Vantajosidade Econômica: Implica a manutenção de preços compatíveis ou inferiores aos praticados no mercado. Requer pesquisa de mercado atualizada, análise de custos de transição (custos de um novo processo licitatório e de mobilização de novo contratado) e, no setor público, a observância dos preços de referência. A Lei nº 14.133/2021, art. 107, condiciona a prorrogação à demonstração de que ela é "mais vantajosa para a Administração".

 

·           Vantajosidade Técnica: Refere-se à qualidade dos serviços prestados, à expertise e ao know-how já internalizados pelo contratado, à ausência de interrupção na prestação do serviço e à adaptação do contratado às rotinas e especificidades da entidade.

Ø  Execução Contratual Satisfatória: O desempenho do contratado ao longo da vigência contratual anterior deve ser satisfatório. Isso é aferido por meio dos registros da fiscalização do contrato, ausência de sanções relevantes, cumprimento dos níveis de serviço acordados e atendimento às demais obrigações contratuais. A figura do fiscal do contrato, detalhada no art. 117 da Lei nº 14.133/2021, é central para fornecer os subsídios para esta avaliação.

 

Ø  Manutenção das Condições de Habilitação: O contratado deve continuar a preencher todos os requisitos de habilitação jurídica, técnica, fiscal, social e trabalhista, e econômico-financeira exigidos na licitação original ou no momento da contratação. A comprovação dessa regularidade deve ser periodicamente exigida e verificada.

 

Ø  Disponibilidade Orçamentária: É imprescindível a existência de créditos orçamentários suficientes para cobrir as despesas decorrentes da prorrogação ou renovação contratual.

Ø  Motivação Formal e Explícita: A decisão de prorrogar deve ser formalizada em processo administrativo próprio, com exposição clara e detalhada dos fundamentos fáticos e jurídicos que a embasam. A motivação é um princípio basilar do Direito Administrativo.


4. Requisitos Formais e Procedimentais


A prorrogação ou renovação contratual exige o cumprimento de um rito formal:

Ø  Iniciativa e Justificativa Técnica: O gestor do contrato ou a área demandante deve, com antecedência razoável do término da vigência, formalizar o pedido de prorrogação, acompanhado de robusta justificativa técnica e econômica.

 

Ø  Pesquisa de Mercado: Realização de pesquisa de preços para aferir a economicidade da prorrogação.

Ø  Manifestação do Contratado: Obtenção da concordância expressa do contratado em prorrogar o contrato nas condições propostas (ou negociadas, dentro dos limites legais).

Ø  Atestado de Execução Satisfatória: Emissão de parecer ou relatório pela fiscalização do contrato, atestando a qualidade dos serviços e o cumprimento das obrigações.

Ø  Verificação da Regularidade Fiscal e Trabalhista: Consulta aos cadastros e certidões pertinentes.

Ø  Parecer Jurídico: Análise da legalidade do procedimento e da minuta do termo aditivo pelo órgão de assessoramento jurídico.

Ø  Autorização da Autoridade Competente: Decisão fundamentada da autoridade administrativa com poderes para autorizar a prorrogação.

Ø  Celebração do Termo Aditivo: Formalização da prorrogação por meio de termo aditivo ao contrato original, que deve ser devidamente assinado pelas partes.

Ø  Publicidade: No setor público, o extrato do termo aditivo deve ser publicado na imprensa oficial ou nos portais de transparência, como condição de eficácia.


5. Limites Temporais e Vedações


A faculdade de prorrogar contratos de serviços contínuos não é perene e encontra limites:

Ø  Prazo Máximo de Vigência: A legislação geralmente estabelece um prazo máximo para a duração total do contrato, incluindo todas as suas prorrogações. Na Lei nº 14.133/2021, via de regra, os contratos de serviços contínuos podem ser prorrogados até o limite de 10 anos (art. 107), sendo o prazo inicial de até 5 anos (art. 106). Existem prazos ainda mais estendidos para hipóteses excepcionais (art. 108, até 10 anos, e art. 114, que permite prazos de até 15 anos para contratos que gerem receita para a Administração).

 

Ø  Serviços Não Contínuos: Contratos de escopo, cuja natureza é a entrega de um objeto específico em prazo determinado (ex: uma obra, um projeto), não se submetem à lógica da prorrogação de serviços contínuos.

 

Ø  Desvantajosidade ou Inexecução: Se a prorrogação se mostrar desvantajosa ou se o contratado tiver histórico de inexecução contratual grave, a prorrogação é inviável.


6. O Papel da Negociação na Prorrogação


A fase que antecede a prorrogação é também uma oportunidade para negociação entre as partes, sempre com o objetivo de assegurar a maior vantajosidade para o contratante. Podem ser objeto de negociação, dentro dos limites legais:

Ø  Redução de Preços: Caso a pesquisa de mercado aponte para valores inferiores, a Administração Pública tem o dever de buscar a repactuação para baixo.

 

Ø  Melhoria dos Níveis de Serviço: Ajustes ou incrementos nos indicadores de qualidade ou nos Acordos de Nível de Serviço (ANS/SLA).

 

Ø  Incorporação de Novas Tecnologias ou Práticas Mais Eficientes: Desde que não desnaturem o objeto contratual.

 

7. Responsabilização em Caso de Prorrogação Indevida

 

A prorrogação de contratos de serviços contínuos sem o preenchimento dos requisitos legais e a demonstração de vantajosidade pode acarretar a responsabilização dos agentes públicos envolvidos, nas esferas administrativa, civil (improbidade administrativa) e, eventualmente, penal, além da nulidade do ato de prorrogação. Os órgãos de controle (como os Tribunais de Contas) exercem fiscalização rigorosa sobre esses atos.

 

Conclusão

 

A prorrogação e a renovação de contratos de prestação de serviços contínuos são ferramentas administrativas de alta relevância, que conjugam a necessidade de continuidade operacional com os princípios da eficiência e da economicidade. No entanto, sua aplicação demanda um processo decisório meticuloso, transparente e estritamente aderente aos requisitos materiais e formais impostos pela legislação e pela boa governança. A demonstração inequívoca da vantajosidade da manutenção do vínculo contratual, aliada à performance satisfatória do contratado e à observância dos limites temporais, constituem o cerne de uma prorrogação legítima e alinhada com o interesse público ou os objetivos precípuos da entidade contratante. A negligência ou o desvio na condução desses processos expõem a gestão a riscos significativos, reforçando a necessidade de capacitação contínua dos agentes envolvidos e de um robusto sistema de controle interno.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Revogação e anulação de licitação

 


A decisão de desfazer um processo licitatório não é trivial e só se justifica mediante o surgimento de novas circunstâncias que evidenciem que a concretização da contratação almejada deixou de atender ao interesse público, tornando-se desvantajosa ou inadequada ou mediante a identificação de algum vício INSANÁVEL. Em outras palavras, a administração pública não pode simplesmente desistir de uma licitação em andamento sem apresentar motivos concretos e posteriores ao início do certame que demonstrem a mudança na avaliação da conveniência, da oportunidade ou da legalidade da contratação.

A Administração Pública deve anular a licitação, por provocação de terceiros ou por ato próprio, mediante parecer escrito e devidamente fundamentado, quando constatado algum vício INSANÁVEL no edital ou no procedimento. De outro lado, deverá revogá-la por razões de interesse público superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta (interesse público ≠ interesse do administrador público). Tanto a anulação como a revogação, portanto, somente serão lícitas se devidamente justificadas, se devidamente demonstrado o vício insanável que imponha a anulação ou a razão de interesse público que fundamente a revogação.

 

A mera insatisfação da Administração com o resultado da licitação não autoriza o desfazimento (mediante anulação ou revogação) do procedimento. Assim, importa verificar se a licitação está sendo anulada ou revogada, por exemplo, em razão da inabilitação ou da desclassificação da empresa que o órgão ou entidade gostaria de contratar, ou do êxito de empresa diversa da “escolhida”. Sendo esses os casos, restará caracterizada a ilegalidade dos desfazimentos.


A Administração tem o dever de abster-se de agir impensadamente, descuidadamente ou precipitadamente. Caracteriza-se infração séria aos deveres inerentes à atividade administrativa a ausência da adoção das cautelas indispensáveis à avaliação acerca da necessidade de se revogar ou anular uma licitação.

Quando o Tribunal de Contas da União (TCU), por exemplo, identifica que a justificativa para a revogação é vaga, imprecisa e incapaz de explicitar a real necessidade de interromper o processo licitatório, ele possui a prerrogativa de ordenar ao órgão responsável que desfaça a revogação. O objetivo dessa medida é permitir que a licitação prossiga seu curso normal, garantindo a observância dos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade e da eficiência, que regem os procedimentos licitatórios.

Essa diretriz do TCU destaca a importância da transparência e da fundamentação nos atos administrativos, especialmente em processos licitatórios, que envolvem o dispêndio de recursos públicos e a seleção da proposta mais vantajosa para a administração. A exigência de fatos supervenientes e de uma motivação clara e específica para a revogação, p. ex., visa a evitar decisões arbitrárias ou baseadas em conveniências políticas que possam prejudicar o interesse público e frustrar as expectativas legítimas dos licitantes.

A intervenção do TCU nesse contexto demonstra seu papel crucial como guardião da legalidade e da economicidade na gestão dos recursos públicos. Ao coibir revogações infundadas, o Tribunal contribui para a credibilidade dos processos licitatórios e para a eficiência da administração pública, assegurando que as contratações sejam realizadas de forma transparente e vantajosa para a sociedade.

É importante notar que a superveniência de fatos que justifiquem a revogação deve ser devidamente comprovada e documentada, permitindo o controle tanto interno quanto externo da administração pública. A mera alegação de inconveniência ou inoportunidade, desprovida de elementos concretos, não se sustenta diante da análise dos órgãos de controle.

Em suma, a revogação de uma licitação é uma medida excepcional que exige responsabilidade e transparência por parte da administração pública. A exigência de fatos supervenientes e de uma motivação robusta, conforme destacado pelo TCU, é fundamental para garantir a lisura dos processos licitatórios e a proteção do interesse público.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

JURISPRUDÊNCIA COMENTADA – Acórdão TCU nº 63/2023 – Primeira Câmara – Erro Grosseiro

 


“Para fins do exercício do poder sancionatório do TCU, considera-se erro grosseiro (art. 28 do Decreto-lei 4.657/1942 - LINDB) aquele que poderia ser percebido por pessoa com diligência abaixo do normal ou que poderia ser evitado por pessoa com nível de atenção aquém do ordinário, decorrente de grave inobservância do dever de cuidado. Associar culpa grave à conduta desviante da que seria esperada do homem médio significa tornar aquela idêntica à culpa comum ou ordinária, negando eficácia às mudanças promovidas pela Lei 13.655/2018 na LINDB, que buscaram instituir novo paradigma de avaliação da culpabilidade dos agentes públicos, tornando mais restritos os critérios de responsabilização.” (TCU - Acórdão 63/2023, Primeira Câmara - Relator: BENJAMIN ZYMLER)

 

COMENTÁRIOS:

A jurisprudência em questão toca um ponto central sobre a interpretação restritiva do erro grosseiro, no contexto do poder sancionatório do Tribunal de Contas da União (TCU), com base no art. 28 do Decreto-Lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB), e as alterações trazidas pela Lei 13.655/2018.

 

Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

§ 1º (VETADO).

§ 2º (VETADO).

§ 3º (VETADO).

O texto define o erro grosseiro como aquele que:

* Poderia ser percebido por uma pessoa com diligência abaixo do normal (ou seja, mesmo com baixa atenção);

* Poderia ser evitado por alguém com nível de atenção aquém do ordinário;

* Decorre de grave inobservância do dever de cuidado.

Essa definição tradicional associa o erro grosseiro à culpa grave, ou seja, uma falha evidente e inexcusável.

A lei de 2018 alterou a LINDB justamente para evitar responsabilizações excessivas por erros que não sejam manifestamente graves ou inexcusáveis.

De fato, equiparar erro grosseiro à culpa comum — ou à conduta esperada do "homem médio" — distorce o espírito da Lei nº 13.655/2018, que procurou estabelecer um novo marco para a responsabilização do agente público com base na culpabilidade qualificada, e não ordinária.

A LINDB, ao exigir erro grosseiro ou dolo para responsabilização pessoal, tem por objetivo afastar o risco de punições injustas por simples equívocos administrativos, especialmente em contextos de ambiguidade normativa, escassez de recursos, pressões institucionais ou deficiências estruturais. Trata-se, como você apontou, de um paradigma mais protetivo, voltado à racionalização do controle e à promoção da segurança jurídica.

Nesse sentido, atribuir erro grosseiro a qualquer falha detectável por um agente mediano ou levemente desatento subverte esse avanço legislativo, revivendo práticas de responsabilização automática que a nova LINDB visa justamente superar. 

Nesse sentido dispõe o Acórdão 1.214/2020 do TCU – Plenário, que adota interpretação compatível com o art. 28 da LINDB:

 

“A responsabilização de agente público depende da demonstração de dolo ou erro grosseiro, de modo que não se deve imputar responsabilidade por simples erro ou equívoco administrativo.”

Além disso, a Advocacia-Geral da União (AGU) já se manifestou no sentido de que o erro grosseiro deve ser “manifesto, evidente, e notoriamente contrário ao direito, em termos que não podem ser justificados pela complexidade ou pela dificuldade interpretativa”.

Se o TCU (ou outro órgão) tratar qualquer desvio do padrão médio como "erro grosseiro", estará neutralizando o efeito protetivo da Lei 13.655/2018. A intenção do legislador foi justamente exigir um grau mais elevado de reprovabilidade (como negligência extrema ou imprudência flagrante) para configurar responsabilidade.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

O Fiscal de Contrato na Nova Lei de Licitações


A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Lei nº 14.133/2021, substitui os antigos marcos legais que regulavam as contratações públicas, consolidando um novo regime jurídico pautado por princípios mais modernos, instrumentos mais robustos de controle e responsabilização, e maior clareza nos papéis dos agentes públicos. Nesse contexto, a figura do fiscal de contrato assume papel central na execução contratual, como guardião da regularidade, da economicidade e da legalidade das contratações administrativas.

A atividade de fiscalização contratual não é nova na Administração Pública, estando presente tanto na Lei nº 8.666/1993 quanto em normas infralegais e em boas práticas administrativas. Contudo, a nova legislação traz avanços importantes ao detalhar o papel do fiscal, sistematizar suas atribuições e vincular sua atuação a um processo mais profissionalizado e técnico de gestão contratual. Essa mudança decorre da necessidade de aprimorar os controles internos e de garantir que a execução contratual produza resultados efetivos, sem desvios, omissões ou falhas que comprometam o interesse público.

I. O fundamento legal da fiscalização na Lei nº 14.133/2021

A nova Lei de Licitações disciplina a fiscalização contratual nos artigos 117 a 122. O artigo 117 estabelece que a execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um ou mais representantes da Administração especialmente designados. Essa regra consagra o dever de a Administração acompanhar a execução dos contratos firmados, eliminando qualquer margem para omissões ou atuações informais.

O poder-dever de fiscalizar não é uma faculdade da Administração, mas uma imposição legal. A omissão nesse dever pode ensejar responsabilização do ente público e dos agentes designados para tal fim. Assim, a fiscalização não se confunde com atos administrativos esporádicos ou com simples controles documentais; trata-se de uma atividade sistemática, técnica e contínua, orientada pela boa-fé, pela eficiência e pela transparência.

O §1º do artigo 117 prevê que a autoridade competente poderá designar um gestor do contrato, distinto do fiscal, que terá a função de coordenar sua execução e atuar como elo entre a contratada e a Administração. Já o §2º dispõe que, sempre que conveniente, poderá ser designado apoio técnico ou setorial para auxiliar na fiscalização. Essa previsão legitima a atuação compartilhada, multidisciplinar e colaborativa da fiscalização, com divisão de tarefas entre agentes com conhecimentos e atribuições distintas.

II. Atribuições do fiscal de contrato

As atribuições do fiscal de contrato são múltiplas e exigem conhecimento técnico, rigor processual e capacidade de análise crítica. De acordo com a legislação e as boas práticas, cabe ao fiscal acompanhar a execução contratual sob os seguintes aspectos:

1.        Verificar se os bens, serviços ou obras estão sendo entregues ou prestados conforme as cláusulas contratuais e os termos do edital.

2.        Registrar a ocorrência de eventuais falhas, atrasos, inadimplementos ou descumprimentos contratuais.

3.        Solicitar à contratada a correção de vícios e irregularidades identificadas.

4.        Analisar documentos fiscais, trabalhistas e previdenciários, nos casos em que o contrato exigir.

5.        Comunicar tempestivamente ao gestor do contrato qualquer fato que possa comprometer a boa execução contratual.

6.        Elaborar relatórios de fiscalização, com registro formal de todas as ocorrências relevantes.

7.        Sugerir a aplicação de sanções, quando cabível, com base em documentação e pareceres técnicos.

8.        Participar de reuniões de acompanhamento e alinhamento contratual.

Tais atividades demandam que o fiscal atue com isenção, diligência, clareza técnica e espírito de colaboração. A atuação não pode ser meramente formal ou protocolar; deve ser efetiva e voltada à garantia da plena satisfação do interesse público.

III. Atribuições compartilhadas: gestor, fiscais e apoio técnico

A Lei nº 14.133/2021 estabelece uma divisão clara e funcional entre os papéis do gestor do contrato, do fiscal e dos apoios técnicos. O gestor tem como função coordenar a execução global do contrato, interagir formalmente com a contratada, consolidar informações dos diversos fiscais e tomar decisões administrativas relevantes. Já os fiscais atuam em áreas específicas: fiscalização técnica, fiscalização administrativa, fiscalização local, entre outras, dependendo do objeto do contrato.

Esse modelo descentralizado favorece a especialização das tarefas e proporciona maior segurança jurídica ao processo de fiscalização. Por exemplo, o fiscal técnico pode ser um engenheiro que avalia a conformidade de uma obra, enquanto o fiscal administrativo confere a documentação de regularidade fiscal e trabalhista.

A atuação dos diversos fiscais deve ser harmoniosa e integrada, com comunicação constante com o gestor do contrato.

O apoio técnico ou setorial pode incluir profissionais de TI, engenheiros, arquitetos, advogados, médicos ou qualquer outro especialista necessário à correta avaliação da execução do objeto contratual. Essa possibilidade reconhece a complexidade das contratações públicas e a necessidade de suporte técnico para decisões mais seguras.

IV. Instrumentos e práticas de fiscalização

Para garantir eficácia na fiscalização contratual, é fundamental que a Administração utilize instrumentos de planejamento, controle e registro. Entre os principais mecanismos destacam-se:

·      Plano de fiscalização: documento que define os critérios, indicadores, frequência e métodos de fiscalização do contrato.

·      Checklists operacionais: auxiliam no acompanhamento sistemático das obrigações contratuais.

·      Relatórios de fiscalização: registros periódicos das atividades e ocorrências relevantes.

·      Sistema informatizado de gestão de contratos: ferramenta que centraliza documentos, prazos, notificações e alertas.

·      Reuniões de acompanhamento: encontros periódicos entre gestor, fiscais e contratada para ajustes e alinhamentos.

·      Registro fotográfico ou audiovisual: documentação de evidências da execução ou de irregularidades.

A adoção desses instrumentos contribui para a padronização das atividades, o aumento da transparência, a segurança jurídica e a rastreabilidade das decisões.

V. Responsabilidade do fiscal de contrato

O fiscal de contrato pode ser responsabilizado por omissão, negligência ou dolo no exercício de suas funções. Tal responsabilização pode ocorrer nas esferas administrativa, civil e até penal, a depender da gravidade da conduta e do prejuízo causado à Administração Pública.

 

“O fiscal de contrato, especialmente designado para o acompanhamento da obra, pode ser responsabilizado quando se omite na adoção de medidas necessárias à manutenção do ritmo de execução normal do empreendimento.” (TCU - Acórdão 2296/2019-Plenário - Relator: ANDRÉ DE CARVALHO)

Contudo, é importante destacar que o fiscal não responde por atos que estejam fora do seu alcance ou que não lhe tenham sido comunicados. Sua responsabilidade é limitada às atividades que lhe foram formalmente atribuídas, mediante designação expressa e capacitação adequada. Além disso, a atuação do fiscal deve ser sempre documentada, a fim de garantir sua segurança jurídica em eventuais processos de apuração de responsabilidades.

 

“O fiscal do contrato não pode ser responsabilizado caso não lhe sejam oferecidas condições apropriadas para o desempenho de suas atribuições. Na interpretação das normas de gestão pública, deverão ser considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo (art. 22, caput, do Decreto-lei 4.657/1942 - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).” (TCU - Acórdão 2973/2019-Segunda Câmara - Relator: ANA ARRAES)

Por outro lado, a ausência de designação formal ou a inércia da Administração em capacitar e apoiar seus fiscais também pode ensejar responsabilidade da própria entidade pública. A estruturação dos controles internos e a formação contínua dos agentes são medidas indispensáveis à boa governança contratual.

VI. Capacitação e valorização dos fiscais

Um dos principais desafios enfrentados pelos entes públicos na implementação da nova lei é a formação de uma cultura de profissionalização da fiscalização contratual. Muitos servidores públicos são designados como fiscais sem a devida preparação técnica, sem apoio institucional e sem um arcabouço normativo interno que oriente sua atuação.

A capacitação dos fiscais deve incluir conteúdos sobre:

·      Legislação de contratos administrativos;

·      Responsabilidades funcionais;

·      Técnicas de fiscalização;

·      Elaboração de relatórios;

·      Utilização de sistemas eletrônicos de gestão;

·      Comunicação e relacionamento com contratadas.

Além da capacitação técnica, é essencial que os fiscais sejam valorizados pela Administração, com o reconhecimento formal da importância estratégica de sua função. A fiscalização não é uma tarefa meramente operacional, mas um dos pilares da integridade, da conformidade e da eficácia das políticas públicas.

VII. A importância da fiscalização para o controle e a governança

A fiscalização contratual tem papel fundamental no controle interno da Administração Pública. Sua atuação permite a detecção precoce de desvios, o saneamento de irregularidades, a responsabilização de contratadas inadimplentes e o fornecimento de dados essenciais para auditorias e avaliações de desempenho.

Além disso, os relatórios elaborados pelos fiscais servem como base para decisões sobre prorrogação, renovação, reequilíbrio econômico-financeiro e aplicação de penalidades. A ausência desses registros pode comprometer todo o ciclo contratual e gerar nulidades em processos administrativos.

A governança pública exige que os contratos sejam acompanhados de forma ativa e planejada. A atuação eficiente dos fiscais contribui para a realização dos objetivos institucionais e para a correta aplicação dos recursos públicos. Portanto, mais do que uma obrigação legal, a fiscalização contratual é um instrumento de gestão estratégica.

VIII. Considerações finais

A figura do fiscal de contrato ganha centralidade no novo regime jurídico de contratações públicas instituído pela Lei nº 14.133/2021. Sua atuação, agora expressamente normatizada, constitui uma das principais garantias de que a execução dos contratos administrativos se dará conforme os princípios constitucionais e legais que regem a Administração Pública.

Ao delimitar com clareza os papéis do fiscal, do gestor e dos apoios técnicos, a nova lei proporciona maior segurança jurídica, padronização de práticas e incentivo à profissionalização da fiscalização. Contudo, a eficácia desse novo modelo depende de investimentos em capacitação, estrutura de controle interno, sistemas informatizados e valorização dos servidores públicos envolvidos.

Em suma, o fiscal de contrato é um agente indispensável à boa gestão pública. Cabe à Administração prover os meios e o suporte para que ele possa cumprir sua função com técnica, responsabilidade e integridade. Assim, será possível avançar rumo a uma Administração mais eficiente, transparente e comprometida com o interesse público.