A aplicação de multas contratuais em contratos administrativos é uma das situações mais delicadas enfrentadas pelas empresas que atuam como fornecedoras do Poder Público. Embora previstas como instrumentos legítimos de c oerção e de tutela do interesse público, as penalidades muitas vezes são utilizadas de forma desproporcional, sem a devida observância aos princípios do contraditório, da ampla defesa e da proporcionalidade — ou mesmo sem adequada fundamentação técnica. Diante desse cenário, o contratado precisa desenvolver uma postura simultaneamente jurídica, estratégica e gerencial para responder às autuações sem comprometer sua saúde financeira, sua imagem institucional e, sobretudo, sua capacidade de continuar competitiva no mercado de licitações.
Mais do que reagir
à penalidade, o desafio real consiste em transformar o episódio em oportunidade
de reorganização interna, mitigação de riscos e fortalecimento do compliance
contratual. Isso porque a forma como a empresa lida com uma multa — desde a
análise do auto de infração até a elaboração das defesas administrativas e
eventuais medidas judiciais — determina não apenas o desfecho imediato, mas
também sua reputação perante a Administração e sua nota de desempenho em
futuros certames, especialmente sob a égide da Lei nº 14.133/2021.
Sobre o assunto, vide:
*
Penalidades nas licitações públicas: causas e consequências
* A Pena de Multa e o Contrato Administrativo
*
Aprevisão contratual como requisito indispensável para a aplicação da pena de multa
*
Anulação judicial de sanção aplicada em sede de licitação
1. A Gênese da Sanção: Entendendo a
Natureza da Multa
Para uma defesa eficaz, é imperativo
compreender a base legal da sanção. Nos contratos administrativos, a multa é
a sanção pecuniária mais comum, aplicada em decorrência
de inadimplemento contratual — seja por atraso injustificado,
inexecução parcial ou total do objeto.
1.1. Multa Moratória vs. Multa
Compensatória
O Direito Administrativo, em consonância com o Direito Privado, distingue a natureza da multa, o que impacta diretamente na sua aplicação e cumulação:
|
Tipo de Multa |
Fundamento |
Natureza Jurídica |
Cumulatividade |
|
Multa de Mora (Atraso) |
Atraso injustificado na execução do contrato. |
Sancionatória, pelo descumprimento do prazo. |
Pode ser cumulada com outras sanções, mas não com rescisão pelo mesmo
fato. |
|
Multa Compensatória |
Inexecução parcial ou total do contrato, ou outros descumprimentos. |
Sancionatória e, em parte, indenizatória (compensação). |
Pode ser cumulada com outras sanções. |
1.2. Base Legal (Lei nº 8.666/93 e Lei nº 14.133/21)
A legislação de licitações e
contratos prevê expressamente a aplicação de multas.
A. Lei nº 8.666/93 (Regime
Transitório):
* Art. 86 (Multa de Mora): "O
atraso injustificado na execução do contrato sujeitará o contratado à multa de
mora, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato."
* Art. 87, Inciso II (Multa por Inexecução): "Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração
poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
(...) II – multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no
contrato;"
B. Lei nº 14.133/21 (Nova Lei de
Licitações e Contratos):
* Art. 156, Inciso II: "Serão
aplicadas ao responsável pelas infrações administrativas previstas nesta Lei as
seguintes sanções: (...) II – multa;"
* O § 4º do Art. 156 é crucial: "A sanção de multa
poderá ser aplicada cumulativamente com as demais sanções."
* O § 9º reforça o princípio da reparação: "A
aplicação das sanções previstas no caput deste artigo não exclui, em
hipótese alguma, a obrigação de reparação integral do dano causado à
Administração Pública."
2. O Protocolo de Defesa: Tutorial
Passo a Passo
O enfrentamento de uma multa deve
ser proativo e metódico.
Passo 1: Recebimento da Notificação e
Análise Preliminar (O Estudo de Caso)
Ao receber a notificação, não se
precipite. O primeiro passo é uma análise técnico-jurídica exaustiva:
a) Verificar a Cláusula Contratual/Editalícia: A multa está prevista no instrumento convocatório e no contrato? A
taxa percentual está em conformidade com o ato?
b) Identificar o Fato Gerador: Qual
é a conduta imputada (atraso, falha, inexecução)?
c) Analisar a Causalidade: A
falha é imputável à sua empresa? Houve caso fortuito, força maior, fato
do príncipe, ou fato da Administração (como atraso na entrega de local
ou de documentos)? Se a inexecução decorre de uma alteração unilateral do
contrato pela Administração, pode-se pleitear o equilíbrio econômico-financeiro e
afastar a multa.
Exemplo Prático (Fato da
Administração): Sua empresa é multada por
atraso na entrega de um lote de computadores (multa moratória). Na defesa,
demonstra-se que a falha decorreu do atraso na emissão da Ordem de
Serviço (OS) pela Administração, que levou 45 dias além do previsto. A
tese é de excludente de responsabilidade por fato da
Administração.
Passo 2: O Contraditório e a Ampla
Defesa
A aplicação de qualquer sanção exige
a instauração de um Processo Administrativo Sancionador (PAS), onde
o direito ao Contraditório e à Ampla Defesa é
sagrado, conforme o Art. 5º, Inciso LV, da Constituição Federal.
* Petição de Defesa: Apresente uma defesa técnica,
robusta e documentada, refutando o nexo de causalidade ou a culpabilidade.
* Prova Documental: Anexe todos os documentos que
corroborem sua tese (e-mails, relatórios, diários de obra, notas
fiscais, etc.).
* Princípio da Razoabilidade e Proporcionalidade: Mesmo que o descumprimento seja reconhecido, a multa deve
ser proporcional à gravidade da infração e aos prejuízos
causados. Multas que se mostram exorbitantes e
desproporcionais ao dano podem ser questionadas (Princípio da Vedação ao
Enriquecimento Sem Causa da Administração).
Passo 3: Recurso Administrativo e a
Tentativa de Desconstituição
Após a decisão de primeira instância,
interponha o Recurso Administrativo no prazo legal de 15 dias
úteis, conforme o art. 166 da Lei nº 14.133/2021. O recurso deve:
* Reiterar as Teses de Defesa: Reforçar
os argumentos de excludentes ou desproporcionalidade.
* Questionar a Dosimetria da Pena: Argumentar
sobre a falta de consideração das circunstâncias atenuantes (ex.: bom histórico
da empresa, baixo grau de culpabilidade, rápida tentativa de correção).
Passo 4: Ação Judicial e o Controle
de Legalidade
Esgotada a via administrativa, a
última alternativa é o Poder Judiciário (Princípio da
Inafastabilidade da Jurisdição - Art. 5º, Inciso XXXV, CF). A ação
judicial (geralmente uma Ação Anulatória de Ato Administrativo) deve focar
na ilegalidade ou abusividade do ato
sancionador.
* Teses de Ilegalidade: Ausência
de previsão legal/contratual, vício no processo administrativo, ausência de
defesa prévia, ou o cerceamento de defesa.
* Teses de Abusividade/Mérito: Violação
da razoabilidade e da proporcionalidade (multa desproporcional ao dano), ou
comprovação de excludentes de responsabilidade.
3. O Olhar da Doutrina e da
Jurisprudência (Recentes e Verificáveis)
Uma defesa de excelência demanda o
respaldo da doutrina especializada e de precedentes
judiciais e de controle.
3.1. Visão Doutrinária: O Rigor da
Proporcionalidade
Para Marçal Justen Filho (em Comentários
à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 18ª Ed., São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2019, p. 1198-1200), a aplicação da multa deve observar a justa
medida. Ele ressalta que o ato punitivo é vinculado à existência da
infração, mas o valor da multa (dentro dos limites
contratuais) é discricionário, exigindo motivação e observância aos princípios
da Proporcionalidade e Razoabilidade.
3.2. Jurisprudência do TCU: Dever de
Sancionar e Vínculo
O TCU é rigoroso quanto ao dever da
Administração de aplicar a sanção, não se tratando de mera discricionariedade:
"O atraso injustificado na execução de obras públicas é ocorrência
grave, de maneira que o órgão ou a entidade contratante tem o dever de
adotar as medidas cabíveis para aplicar as multas contratuais e demais penalidades previstas
em lei, não se tratando de decisão discricionária da Administração." (Acórdão
TCU nº 395/2022 – Plenário, Ministro Relator: Vital do Rego).
3.3. Jurisprudência do STJ: O Limite
da Multa Exorbitante
O Superior Tribunal de Justiça (STJ)
atua como baluarte contra o excesso, aplicando o princípio da proporcionalidade
mesmo no Direito Administrativo:
"O art. 86, da Lei n° 8.666/93, impõe multa administrativa pela
mora no adimplemento do serviço contratado por meio de certame licitatório, o
que não autoriza sua fixação em percentual exorbitante que importe em
locupletamento ilícito dos órgãos públicos... As penas administrativas,
da mesma forma que as do direito privado, devem ser moderadas. Não
podem ser um instrumento para destruir, para aniquilar o contratante mais
fraco." (REsp n° 330.677 - RS (2001/0091240-0 - Julgado em 19/03/2002, Relator: Ministro José Delgado)
4. Quadro-Resumo Estratégico para o Contratado
|
Fase |
Ação Recomendada |
Objetivo Estratégico |
Base Jurídica de Suporte |
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Preventiva |
Gestão de riscos, documentação detalhada da execução (Diário de Obra,
e-mails, atas). |
Criar um acervo probatório para justificar eventuais atrasos ou
falhas. |
Princípio da Boa-Fé (Art. 422, CC) e Dever de Colaboração. |
|
Notificação |
Análise imediata e técnica: fato gerador, nexo de causalidade e
legalidade da cobrança. |
Identificar teses de defesa: Excludentes de Responsabilidade (Fato da
Administração, Força Maior) ou Ilegalidade/Vício Formal. |
Art. 5º, LV, CF (Contraditório e Ampla Defesa). |
|
Defesa |
Apresentação de defesa administrativa robusta, com foco na documentação e
nos Princípios da Razoabilidade e Proporcionalidade. |
Desconstituir a culpabilidade ou reduzir o valor da multa. |
Jurisprudência STJ/TCU sobre proporcionalidade e dever de motivação. |
|
Recurso |
Recurso administrativo tempestivo, reforçando o mérito da defesa e
questionando a dosimetria da sanção. |
Reverter a decisão na esfera administrativa, evitando a cobrança. |
Art. 166, Lei nº 14.133/2021. |
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Judicial |
Ação Anulatória, se esgotada a via administrativa, focando na ilegalidade
do ato ou abusividade do valor. |
Controle judicial da legalidade e do mérito do ato administrativo
punitivo. |
Art. 5º, XXXV, CF (Inafastabilidade da Jurisdição). |
5. Conclusão: A Arte de Gerir a Crise Sancionatória
Lidar com multas contratuais não é
apenas um desafio de Direito Administrativo; é um teste de gestão
empresarial e de inteligência jurídica. O sucesso reside
na capacidade de documentar a execução contratual (fase
preventiva) e de apresentar uma defesa técnica e fundamentada (fase
reativa), capaz de comprovar as excludentes de responsabilidade ou a
desproporcionalidade da penalidade.
Sua empresa não deve se resignar à
presunção de legalidade do ato administrativo, mas sim, valer-se de todos os
instrumentos do Direito para garantir que a sanção aplicada seja justa, legal e
proporcional.
