domingo, 23 de novembro de 2025

Como Lidar com Multas Contratuais sem Comprometer Sua Empresa: Um Guia Estratégico para o Contratado

 

A  aplicação   de   multas   contratuais   em contratos administrativos é uma das situações mais delicadas enfrentadas pelas empresas que atuam como fornecedoras do Poder Público. Embora previstas   como   instrumentos   legítimos   de c  oerção  e  de  tutela  do   interesse público, as penalidades   muitas   vezes são utilizadas de forma desproporcional, sem a devida observância aos princípios  do  contraditório,  da  ampla  defesa  e  da  proporcionalidade — ou mesmo sem adequada  fundamentação técnica. Diante desse cenário, o contratado precisa desenvolver  uma postura simultaneamente   jurídica,  estratégica  e  gerencial  para  responder  às autuações  sem comprometer  sua  saúde  financeira, sua  imagem institucional e, sobretudo, sua capacidade de continuar competitiva no mercado de licitações.

Mais do que reagir à penalidade, o desafio real consiste em transformar o episódio em oportunidade de reorganização interna, mitigação de riscos e fortalecimento do compliance contratual. Isso porque a forma como a empresa lida com uma multa — desde a análise do auto de infração até a elaboração das defesas administrativas e eventuais medidas judiciais — determina não apenas o desfecho imediato, mas também sua reputação perante a Administração e sua nota de desempenho em futuros certames, especialmente sob a égide da Lei nº 14.133/2021.

Sobre o assunto, vide:

* Penalidades nas licitações públicas: causas e consequências

 

* A Pena de Multa e o Contrato Administrativo

 

* Aprevisão contratual como requisito indispensável para a aplicação da pena de multa

 

* Anulação judicial de sanção aplicada em sede de licitação

1. A Gênese da Sanção: Entendendo a Natureza da Multa

Para uma defesa eficaz, é imperativo compreender a base legal da sanção. Nos contratos administrativos, a multa é a sanção pecuniária mais comum, aplicada em decorrência de inadimplemento contratual — seja por atraso injustificado, inexecução parcial ou total do objeto.

1.1. Multa Moratória vs. Multa Compensatória

O Direito Administrativo, em consonância com o Direito Privado, distingue a natureza da multa, o que impacta diretamente na sua aplicação e cumulação:

Tipo de Multa

Fundamento

Natureza Jurídica

Cumulatividade

Multa de Mora (Atraso)

Atraso injustificado na execução do contrato.

Sancionatória, pelo descumprimento do prazo.

Pode ser cumulada com outras sanções, mas não com rescisão pelo mesmo fato.

Multa Compensatória

Inexecução parcial ou total do contrato, ou outros descumprimentos.

Sancionatória e, em parte, indenizatória (compensação).

Pode ser cumulada com outras sanções.

1.2. Base Legal (Lei nº 8.666/93 e Lei nº 14.133/21)

A legislação de licitações e contratos prevê expressamente a aplicação de multas.

A. Lei nº 8.666/93 (Regime Transitório):

* Art. 86 (Multa de Mora): "O atraso injustificado na execução do contrato sujeitará o contratado à multa de mora, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato."

* Art. 87, Inciso II (Multa por Inexecução): "Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: (...) II – multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;"

B. Lei nº 14.133/21 (Nova Lei de Licitações e Contratos):

* Art. 156, Inciso II: "Serão aplicadas ao responsável pelas infrações administrativas previstas nesta Lei as seguintes sanções: (...) II – multa;"

* O § 4º do Art. 156 é crucial: "A sanção de multa poderá ser aplicada cumulativamente com as demais sanções."

* O § 9º reforça o princípio da reparação: "A aplicação das sanções previstas no caput deste artigo não exclui, em hipótese alguma, a obrigação de reparação integral do dano causado à Administração Pública."

2. O Protocolo de Defesa: Tutorial Passo a Passo

O enfrentamento de uma multa deve ser proativo e metódico.

 

Passo 1: Recebimento da Notificação e Análise Preliminar (O Estudo de Caso)

Ao receber a notificação, não se precipite. O primeiro passo é uma análise técnico-jurídica exaustiva:

a) Verificar a Cláusula Contratual/Editalícia: A multa está prevista no instrumento convocatório e no contrato? A taxa percentual está em conformidade com o ato?

b) Identificar o Fato Gerador: Qual é a conduta imputada (atraso, falha, inexecução)?

c) Analisar a Causalidade: A falha é imputável à sua empresa? Houve caso fortuito, força maior, fato do príncipe, ou fato da Administração (como atraso na entrega de local ou de documentos)? Se a inexecução decorre de uma alteração unilateral do contrato pela Administração, pode-se pleitear o equilíbrio econômico-financeiro e afastar a multa.

Exemplo Prático (Fato da Administração): Sua empresa é multada por atraso na entrega de um lote de computadores (multa moratória). Na defesa, demonstra-se que a falha decorreu do atraso na emissão da Ordem de Serviço (OS) pela Administração, que levou 45 dias além do previsto. A tese é de excludente de responsabilidade por fato da Administração.

Passo 2: O Contraditório e a Ampla Defesa

A aplicação de qualquer sanção exige a instauração de um Processo Administrativo Sancionador (PAS), onde o direito ao Contraditório e à Ampla Defesa é sagrado, conforme o Art. 5º, Inciso LV, da Constituição Federal.

* Petição de Defesa: Apresente uma defesa técnica, robusta e documentada, refutando o nexo de causalidade ou a culpabilidade.

* Prova Documental: Anexe todos os documentos que corroborem sua tese (e-mails, relatórios, diários de obra, notas fiscais, etc.).

* Princípio da Razoabilidade e Proporcionalidade: Mesmo que o descumprimento seja reconhecido, a multa deve ser proporcional à gravidade da infração e aos prejuízos causados. Multas que se mostram exorbitantes e desproporcionais ao dano podem ser questionadas (Princípio da Vedação ao Enriquecimento Sem Causa da Administração).

Passo 3: Recurso Administrativo e a Tentativa de Desconstituição

Após a decisão de primeira instância, interponha o Recurso Administrativo no prazo legal de 15 dias úteis, conforme o art. 166 da Lei nº 14.133/2021. O recurso deve:

* Reiterar as Teses de Defesa: Reforçar os argumentos de excludentes ou desproporcionalidade.

* Questionar a Dosimetria da Pena: Argumentar sobre a falta de consideração das circunstâncias atenuantes (ex.: bom histórico da empresa, baixo grau de culpabilidade, rápida tentativa de correção).

Passo 4: Ação Judicial e o Controle de Legalidade

Esgotada a via administrativa, a última alternativa é o Poder Judiciário (Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição - Art. 5º, Inciso XXXV, CF). A ação judicial (geralmente uma Ação Anulatória de Ato Administrativo) deve focar na ilegalidade ou abusividade do ato sancionador.

* Teses de Ilegalidade: Ausência de previsão legal/contratual, vício no processo administrativo, ausência de defesa prévia, ou o cerceamento de defesa.

* Teses de Abusividade/Mérito: Violação da razoabilidade e da proporcionalidade (multa desproporcional ao dano), ou comprovação de excludentes de responsabilidade.

3. O Olhar da Doutrina e da Jurisprudência (Recentes e Verificáveis)

Uma defesa de excelência demanda o respaldo da doutrina especializada e de precedentes judiciais e de controle.

3.1. Visão Doutrinária: O Rigor da Proporcionalidade

Para Marçal Justen Filho (em Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 18ª Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 1198-1200), a aplicação da multa deve observar a justa medida. Ele ressalta que o ato punitivo é vinculado à existência da infração, mas o valor da multa (dentro dos limites contratuais) é discricionário, exigindo motivação e observância aos princípios da Proporcionalidade e Razoabilidade.

3.2. Jurisprudência do TCU: Dever de Sancionar e Vínculo

O TCU é rigoroso quanto ao dever da Administração de aplicar a sanção, não se tratando de mera discricionariedade:

"O atraso injustificado na execução de obras públicas é ocorrência grave, de maneira que o órgão ou a entidade contratante tem o dever de adotar as medidas cabíveis para aplicar as multas contratuais e demais penalidades previstas em lei, não se tratando de decisão discricionária da Administração." (Acórdão TCU nº 395/2022 – Plenário, Ministro Relator: Vital do Rego).

3.3. Jurisprudência do STJ: O Limite da Multa Exorbitante

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) atua como baluarte contra o excesso, aplicando o princípio da proporcionalidade mesmo no Direito Administrativo:

"O art. 86, da Lei n° 8.666/93, impõe multa administrativa pela mora no adimplemento do serviço contratado por meio de certame licitatório, o que não autoriza sua fixação em percentual exorbitante que importe em locupletamento ilícito dos órgãos públicos... As penas administrativas, da mesma forma que as do direito privado, devem ser moderadas. Não podem ser um instrumento para destruir, para aniquilar o contratante mais fraco." (REsp n° 330.677 - RS (2001/0091240-0 - Julgado em 19/03/2002, Relator: Ministro José Delgado)

4. Quadro-Resumo Estratégico para o Contratado

Fase

Ação Recomendada

Objetivo Estratégico

Base Jurídica de Suporte

Preventiva

Gestão de riscos, documentação detalhada da execução (Diário de Obra, e-mails, atas).

Criar um acervo probatório para justificar eventuais atrasos ou falhas.

Princípio da Boa-Fé (Art. 422, CC) e Dever de Colaboração.

Notificação

Análise imediata e técnica: fato gerador, nexo de causalidade e legalidade da cobrança.

Identificar teses de defesa: Excludentes de Responsabilidade (Fato da Administração, Força Maior) ou Ilegalidade/Vício Formal.

Art. 5º, LV, CF (Contraditório e Ampla Defesa).

Defesa

Apresentação de defesa administrativa robusta, com foco na documentação e nos Princípios da Razoabilidade e Proporcionalidade.

Desconstituir a culpabilidade ou reduzir o valor da multa.

Jurisprudência STJ/TCU sobre proporcionalidade e dever de motivação.

Recurso

Recurso administrativo tempestivo, reforçando o mérito da defesa e questionando a dosimetria da sanção.

Reverter a decisão na esfera administrativa, evitando a cobrança.

Art. 166, Lei nº 14.133/2021.

Judicial

Ação Anulatória, se esgotada a via administrativa, focando na ilegalidade do ato ou abusividade do valor.

Controle judicial da legalidade e do mérito do ato administrativo punitivo.

Art. 5º, XXXV, CF (Inafastabilidade da Jurisdição).

5. Conclusão: A Arte de Gerir a Crise Sancionatória

Lidar com multas contratuais não é apenas um desafio de Direito Administrativo; é um teste de gestão empresarial e de inteligência jurídica. O sucesso reside na capacidade de documentar a execução contratual (fase preventiva) e de apresentar uma defesa técnica e fundamentada (fase reativa), capaz de comprovar as excludentes de responsabilidade ou a desproporcionalidade da penalidade.

Sua empresa não deve se resignar à presunção de legalidade do ato administrativo, mas sim, valer-se de todos os instrumentos do Direito para garantir que a sanção aplicada seja justa, legal e proporcional.