A atuação do servidor público em licitações e contratos não é um exercício de obediência cega. É, antes de tudo, um ato de responsabilidade e vigilância. A ordem hierárquica, pilar da estrutura administrativa, cede em face da ordem jurídica. Quando confrontado com um comando que macula a legalidade, o servidor se vê diante de um ponto de ruptura. O que fazer? A resposta não é o confronto direto e imprudente, mas a estratégia inteligente e documentada.
O primeiro passo, e o mais vital, é a formalização da
divergência. O servidor não deve jamais acatar a ordem ilegal verbalmente
e, em silêncio, tornar-se cúmplice. A lei exige que ele seja um "guardião
da legalidade". Deve utilizar os instrumentos internos da Administração
para registrar a ordem e, de
forma coesa e justificada, apontar sua impropriedade.
1. A Formalização da Ordem Superior
Aja com precisão cirúrgica.
Se a ordem foi verbal, o servidor deve, imediatamente, redigir um memorando
interno dirigido à autoridade superior. Este documento não é um ato de
insubordinação, mas uma diligência. Nele, o servidor deve:
* Identificar a ordem e a
autoridade que a emitiu: "Em referência à ordem
verbal de V. Sa. de [data], para que [descreva a ordem, por exemplo, ‘dispense
a fase de pesquisa de preços em um processo de contratação direta’]."
* Fundamentar a ilegalidade:
"Em análise, constato que a referida ordem contraria o disposto no artigo
72, II, da Lei nº 14.133/2021, que exige a elaboração de estimativa de
preços da contratação. A ausência de tal etapa compromete a competitividade e a
vantajosidade da contratação, em desacordo com o princípio da economicidade."
Ao enviar este memorando, o servidor cria uma "cápsula do
tempo", um registro documental que transfere o ônus da
responsabilidade para a autoridade que, ciente dos riscos, insiste no comando
ilegal. Essa é a primeira e mais eficaz linha de defesa.
2. O Instrumento da Representação Formal
Se a ordem for reiterada, a representação formal é o
próximo passo. A Lei nº 8.112/1990 é cristalina em seu art. 116, que prevê o
dever do servidor de "levar as irregularidades de que tiver ciência em
razão do cargo ao conhecimento da autoridade superior ou, quando houver
suspeita de envolvimento desta, ao conhecimento de outra autoridade competente".
Esta é a bússola que orienta a conduta do agente público.
No âmbito de licitações e contratos, a representação deve ser
endereçada aos órgãos de controle interno (Corregedoria, Auditoria Interna) e,
em casos de maior gravidade, aos órgãos de controle externo, como o Tribunal de
Contas (TC) do Estado ou da União e o
Ministério Público (MP) Federal ou Estadual, conforme o caso. Essa ação, embora
drástica, é a única garantia de que o servidor não será responsabilizado por
omissão.
3. O Exame de Conscientização da Ilegalidade
A recusa de uma ordem não pode ser arbitrária. Ela exige um juízo
de valor. O servidor deve ser capaz de distinguir a ilegalidade manifesta
da mera discordância técnica. A ilegalidade é manifesta quando sua violação à
norma é evidente, como a tentativa de dispensar um procedimento licitatório sem
que o caso se enquadre em uma das hipóteses legais previstas no art. 75 da Lei
nº 14.133/2021.
Há
que se ponderar, pois, que a recusa em cumprir a ordem ilegal deve se dar de
forma amplamente justificada ou motivada.
Além de proteger o servidor, a justificativa da recusa contribui
para a moralidade administrativa. Um superior hierárquico que emite
ordens ilegais pode estar agindo em interesse próprio ou de terceiros, em
detrimento do interesse público. A recusa justificada, ao ser formalizada, cria
um registro que pode ser utilizado em investigações internas ou externas,
expondo a conduta inadequada e garantindo que o ato ilegal não seja executado.
É uma forma de o servidor cumprir com sua responsabilidade cívica e
profissional de defender o patrimônio e os princípios que regem a administração
pública.
A obediência, nesse caso, não pode ser justificativa. A Lei nº
8.112/1990, em seu art. 116, IV, é inequívoca:
"Art. 116. São deveres do
servidor:
(...)
IV - cumprir as ordens superiores,
exceto quando manifestamente ilegais;
(...)”
A redação do dispositivo é um farol que ilumina o caminho da
prudência. A obediência não é uma virtude quando submissa à ilegalidade.
4. Análise de Jurisprudência Recente
Consultas a bancos de jurisprudência do TCU, STJ e STF para
encontrar acórdãos recentes que tratem especificamente da defesa do servidor
que se recusa a cumprir uma ordem ilegal, com o objetivo de demonstrar a
responsabilidade da autoridade que a emitiu e não do subordinado, não
retornaram resultados específicos. A jurisprudência, em sua maioria, foca na
responsabilização dos agentes públicos que praticaram a ilegalidade, sem entrar
no mérito do mecanismo de defesa do servidor que se recusou a obedecer. Ou seja,
a jurisprudência, tanto do TCU quanto do STJ, aborda a questão, porém, a
maioria dos acórdãos recentes concentra-se na responsabilização de gestores e
não diretamente na defesa do servidor subordinado que se recusa a cumprir a
ordem.
A ausência de jurisprudência
específica, entretanto,
não é um vácuo, mas uma confirmação da tese. A lei já é clara. A jurisprudência, ao responsabilizar os agentes
públicos por suas ilegalidades, reforça o dever de agir com diligência e de não
se eximir da responsabilidade. A melhor forma de não ser responsabilizado por
um ilícito é, por princípio, não praticá-lo.
O servidor público, munido de conhecimento técnico e amparado pela
lei, não é um peão no tabuleiro burocrático, mas um verdadeiro agente de
transformação. Sua defesa reside na documentação impecável, na fundamentação
jurídica robusta e na recusa ética e inabalável a qualquer ordem que
se desvie do caminho da legalidade.
5. Reiterando as recomendações
Infelizmente,
é comum que o superior hierárquico emita ordens meramente verbais (não
formaliza; não escreve) para os seus subordinados, visto que desta forma, não
deixa rastro das ordens emitidas. Assim, ele se blinda contra eventuais
auditorias externas (TCs), criando uma lacuna no histórico do processo de
contratação.
Acredito
que esse seja o principal desafio enfrentado pelos servidores públicos que
atuam na linha de frente (pregoeiros, membros de comissão de licitação, fiscais
e gestores de contrato etc.), colocando os seus CPFs em rota de colisão com os
tribunais de contas.
Eis
algumas situações que podem ser citadas:
a) determinação ao agente de contratação para
restringir a publicidade do edital para que apenas alguns fornecedores fiquem
cientes da licitação;
b) determinação ao agente de contratação para
criar um Termo de Referência ou um Projeto Básico com exigências excessivas,
que somente uma empresa específica consegue cumprir;
c) determinação ao agente de contratação para
contratar diretamente a empresa “X”, mesmo que a situação não se enquadre nas
hipóteses de dispensa ou inexigibilidade;
d) determinação à comissão ou ao pregoeiro
para habilitar/inabilitar ou classificar/desclassificar determinada licitante;
e) determinação à comissão ou ao pregoeiro
para “fechar os olhos” para determinada exigência editalíca ou para imprimir
rigor desproporcional ao julgamento;
f) determinação ao fiscal de contrato para
autorizar a execução de serviços desacobertados de termo aditivo ou com termo
aditivo com justificativa insuficiente;
g) determinação ao fiscal de contrato para
atestar a prestação de serviço ou a entrega do material, mesmo que a empresa
não tenha cumprido o contrato;
h) determinação ao fiscal do contrato para
alterar as especificações técnicas no meio do processo de contratação para
favorecer determinada empresa;
i) determinação ao gestor do contrato para não
aplicar as penalidades previstas no contrato, como multas ou impedimento de
licitar e contratar, mesmo sabendo que a empresa não cumpriu o prazo ou o
escopo do serviço;
j) determinação ao gestor do contrato para
conceder o reequilíbrio econômico-financeiro para a empresa “X”, mesmo que ela
não comprove os fatos supervenientes e imprevisíveis e nenhum dos requisitos
necessários à concessão;
k) determinação ao ordenador de despesa para
autorizar a realização de pagamentos por serviços não executados ou mal feitos.
A
sugestão para esses casos é bastante simples: PREENCHA A LACUNA!!! Ou seja,
conforme já ressaltado, formalize a ordem verbal, emitindo um documento (memorando
ou e-mail) para o seu superior, relatando que “em relação à ordem (...descrever
minuciosamente a ordem...), emitida verbalmente em ___/___/___, após as
diligências necessárias, esclarecemos que as providências cabíveis serão
adotadas no prazo de ___ dias [ou: após as diligências necessárias,
esclarecemos que não poderemos atendê-lo, visto que a sua determinação viola
frontalmente a regra insculpida no(s) art(s). .... da Lei ....(Lei 14.133/2021,
Lei 9.784/1999, Lei 4.320/1964, Lei 8.112/90, Lei Complementar 123/2006, o
princípio da(o) (...) etc)]....”. Se possível, cite doutrina e jurisprudência
aplicáveis a fim de conferir maior credibilidade aos seus argumentos. Em
síntese, justifique ou motive a sua recusa com a necessária robustez.
Mas não basta essa simples comunicação. O servidor deve ser firme
e persistente em sua recusa.
A firmeza na recusa é o primeiro passo para o servidor se
resguardar. Ao receber uma ordem verbal ilegal, é crucial que o servidor não
hesite. A hesitação pode ser interpretada como aquiescência ou insegurança, o
que pode encorajar a chefia a insistir na ilegalidade. A persistência é a etapa
que transforma a firmeza em segurança jurídica. A ordem ilegal, por ser verbal,
não deixa rastros. O servidor, portanto, precisa ser persistente na sua
formalização.
É
importante destacar que a formalização das ocorrências é de extrema importância
para o servidor, visto que esses documentos constituirão provas de sua atuação.
O
registro da ocorrência, por meio de canais oficiais como e-mail, memorando ou
sistemas eletrônicos de comunicação interna, confere ao ato a publicidade e
a materialidade necessárias. Ele serve como prova documental de que o
servidor se opôs à ordem ilegal e que cumpriu seu dever de zelar pela
legalidade e moralidade administrativa. Isso fortalece a posição do servidor em
eventual processo administrativo disciplinar ou ação judicial, protegendo-o de
retaliações ou de ser responsabilizado por uma ordem que não partiu dele.
Ao agir desta forma, o superior hierárquico não poderá agir contra
o servidor, visto que a formalização da ordem transfere a responsabilidade para
a autoridade superior. Ao documentar a
ordem verbal e as razões para a sua recusa, o servidor cria uma prova material
irrefutável de sua diligência e prudência.
Juridicamente, esse ato de formalização serve a dois propósitos
fundamentais:
1. Exclusão da Responsabilidade do Subordinado
O ato de formalizar a ordem verbal e as justificativas para sua
recusa, com base em dispositivos legais, coloca o servidor sob o manto da
legalidade. Se a ordem for manifestamente ilegal, a recusa se ampara no artigo
116, inciso IV, da Lei nº 8.112/1990, que exime o servidor do dever de cumprir
ordens que "manifestamente ilegais". Ao documentar a ilegalidade, o
servidor demonstra que agiu em conformidade com o seu dever legal,
protegendo-se de acusações de desobediência ou de cumplicidade. A
responsabilidade por qualquer dano ou irregularidade recai, então, sobre a
autoridade que, ciente dos riscos, insistiu na ordem.
2. Prevenção de Abuso de Autoridade
A formalização serve como um mecanismo de "cheques e
balanças" (sistema de freios e contrapesos). Ao ser confrontado com um
documento que expõe a ilegalidade de sua ordem, o superior hierárquico é
forçado a refletir sobre a legalidade de sua ação. A documentação torna a ordem
pública dentro da esfera administrativa, sujeitando-a à análise de outros
servidores e, eventualmente, dos órgãos de controle. Isso inibe a prática de
ordens ilícitas e protege o servidor de uma possível retaliação, já que a
negativa ou a punição injustificada a ele poderiam ser interpretadas como abuso
de autoridade, passível de sanção.
Em essência, a formalização transforma a ordem verbal e obscura em
um ato administrativo transparente e verificável, o que é a essência da
legalidade e da publicidade na Administração Pública.
Para
a autoridade superior, a emissão de uma ordem ilegal que é cumprida pelo
subordinado pode resultar em uma pena agravada. Já para o subordinado que a
cumpre, a pena pode ser abrandada, pois a obediência a uma ordem de autoridade
superior é considerada um fator atenuante.
Mas
com pena abrandada ou não, fato é que ninguém quer ser penalizado, não é mesmo?
O
servidor público não deve se dobrar às ordens ilegais. Antes de tudo, ele
precisa se conscientizar que o mundo é regido por leis! É preciso se conscientizar que as mesmas leis que condenam o servidor,
o resguardam.
Cabe
registrar que também em relação às ordens verbais LEGAIS é conveniente que se
“preencha a lacuna” (formalizar a ordem verbal), a fim de se evitar futuros
questionamentos sobre os procedimentos adotados (realizados por determinação legal
do superior), visto que uma ordem produz reflexos de toda natureza (econômica,
financeira, patrimonial, temporal, política, social etc.).
6. Fundamentação Jurídica para a Denúncia
Por
fim, impende ponderar que a necessidade de denunciar ordens ilegais encontra
amparo nas seguintes normas:
*
Lei nº 8.112/90: Em seu artigo 116,
inciso VI, a lei impõe o dever de "levar ao conhecimento da autoridade
superior as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo". Essa
é a base legal para a denúncia interna. O servidor não apenas pode, mas deve
informar as ilegalidades.
*
Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade
Administrativa): A inércia diante de uma ilegalidade pode caracterizar omissão,
o que, dependendo do caso, pode levar a uma responsabilização por ato de
improbidade, especialmente se o ato resultar em prejuízo ao erário ou violar
princípios administrativos. A denúncia, portanto, é um mecanismo de defesa do
próprio servidor.
Portanto,
o servidor que se depara com uma ordem ilegal está em uma encruzilhada moral e
legal. O caminho correto e mais seguro é a recusa
seguida da denúncia. A lei que o
poderia punir por acatar uma ordem ilícita é a mesma que o protegerá por ter
agido com probidade e coragem.
7. Quadro-Resumo – A salvaguarda do servidor
Etapa |
Ação do Servidor |
Fundamentação Legal |
1. Análise |
Avaliar a legalidade da ordem,
identificando a manifesta ilegalidade ou a sua contrariedade aos princípios
da Administração Pública. |
Princípio da Legalidade (Art.
37, caput, CF/88) |
2. Formalização |
Formalizar a ordem por escrito
(e-mail, memorando). |
Princípio da Publicidade (Art.
37, caput, CF/88) e Risco de responsabilização por ordem verbal
(jurisprudência do TCU) |
3. Objeção |
Elaborar uma justificativa ou
exposição de motivos, expondo as razões da discordância e demonstrando a
ilegalidade da ordem. |
Dever de cumprir a lei e de não
cumprir ordem manifestamente ilegal (Art. 116, IV, Lei nº 8.112/90) e
Princípio da Eficiência (Art. 37, caput, CF/88) |
4. Representação |
Levar a questão ao conhecimento
de autoridade superior competente, da auditoria interna, da CGU, do TCU ou do
MP. |
Dever de levar irregularidades
ao conhecimento das autoridades (Art. 116, VI, Lei nº 8.112/90) e Dever de
lealdade à instituição. |
Tema contemporâneo e muito afeito aos Servidores Públicos em especial aos Agentes de Contratação. Penso que em breve poderá haver um enxame desses levantes contra o abuso de autoridade.
ResponderExcluirComo sempre, o Dr. Leonardo resumiu e sintetizou as raras experiências em que Servidores se valeram da lei para não obedecer a seus superiores, agentes públicos ou políticos. Parabéns novamente!
Muito obrigado, Doutor!!!
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