“Entre a sedução da economia aparente e a
racionalidade da escolha mais vantajosa.”
Introdução
A velha máxima
popular de que “o menor preço sempre vence” ainda reverbera nos corredores da
Administração Pública e nas estratégias de muitos licitantes. Contudo, à luz do
ordenamento jurídico vigente — especialmente após a promulgação da Lei nº
14.133/2021 — essa assertiva não apenas é ultrapassada, como pode ser
perigosa quando interpretada de forma literal ou mecanicista.
1. O
critério do menor preço na legislação: o que diz a norma?
Lei nº
14.133/2021
A nova lei, no art.
33, dispõe sobre os critérios de julgamento, entre os quais se destaca:
Art. 33. O julgamento das
propostas será realizado de acordo com os seguintes critérios:
I – menor preço;
II – maior desconto;
III – melhor técnica ou conteúdo artístico;
IV – técnica e preço;
V – maior retorno econômico.
A escolha do
critério deve atender ao interesse público concreto, nos termos do art.
11, que exige que o objeto da contratação atenda ao princípio da seleção
da proposta mais vantajosa para a Administração. Isto significa que nem
sempre a proposta mais barata corresponde à mais vantajosa.
Lei nº
10.520/2002 e Decreto nº 10.024/2019
Ambos mantêm o menor
preço como critério central dos pregões, mas condicionam sua validade à exequibilidade
e à compatibilidade com as especificações técnicas do objeto, além da vantajosidade
comprovada.
“Art. 59.
Serão desclassificadas as propostas que:
I -
contiverem vícios insanáveis;
II - não
obedecerem às especificações técnicas pormenorizadas no edital;
III -
apresentarem preços inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado
para a contratação;
IV - não
tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração;
V -
apresentarem desconformidade com quaisquer outras exigências do edital, desde
que insanável.
§ 1º A
verificação da conformidade das propostas poderá ser feita exclusivamente em
relação à proposta mais bem classificada.
§ 2º A
Administração poderá realizar diligências para aferir a exequibilidade das
propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada, conforme disposto
no inciso IV do caput deste artigo.
§ 3º No
caso de obras e serviços de engenharia e arquitetura, para efeito de avaliação
da exequibilidade e de sobrepreço, serão considerados o preço global, os
quantitativos e os preços unitários tidos como relevantes, observado o critério
de aceitabilidade de preços unitário e global a ser fixado no edital, conforme
as especificidades do mercado correspondente.
§ 4º No
caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as
propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do
valor orçado pela Administração.
§ 5º Nas
contratações de obras e serviços de engenharia, será exigida garantia adicional
do licitante vencedor cuja proposta for inferior a 85% (oitenta e cinco por
cento) do valor orçado pela Administração, equivalente à diferença entre este
último e o valor da proposta, sem prejuízo das demais garantias exigíveis de
acordo com esta Lei.” (Lei 14.133/2021)
2. Quando o menor
preço não vence — e não deve vencer
Situações
críticas que demandam cuidado:
Situação |
Risco Jurídico |
Fundamento Legal |
Proposta inexequível |
Prejuízo contratual e risco de inexecução
(rescisão unilateral, aditivos onerosos, glosa orçamentária etc.) |
Art. 59, §§ 1º ao 5º, da Lei 14.133/21, e Súmula
262 do TCU |
Objeto de alta complexidade técnica |
Prejuízo à qualidade |
Art. 34 da Lei 14.133/21 |
Menor preço com cláusula técnica vaga no edital |
Risco de judicialização e nulidade |
Princípios da isonomia, vinculação ao instrumento
convocatório e do julgamento objetivo |
3. O perigo do menor preço aparente: quando a economia se
transforma em prejuízo
O valor enganoso e o espelho falso
O "menor preço" é miragem: atrativo
à primeira vista, mas, muitas vezes, traiçoeiro. Sob a lógica da economia
rentista, ele seduz licitantes e gestores públicos, estimulando ofertas com
margem reduzida em detrimento da viabilidade técnica. No entanto, tal economia
superficial pode desembocar na ruína contratual: atrasos, aditivos onerosos ou
até abandono do objeto, desvirtuando a finalidade pública do contrato.
Fundamentos legais e o art. 59 da Lei 14.133/2021
O art. 59, § 4º, da Lei nº 14.133/2021
estabelece que propostas abaixo de 75 % do orçamento estimado em obras e
serviços de engenharia podem ser consideradas inexequíveis. Contudo, esse
dispositivo não autoriza desclassificação automática: o § 2º impõe à
Administração a obrigação de oportunizar ao licitante a comprovação da
viabilidade da proposta.
Jurisprudência do TCU: presunção relativa, não
absoluta
Acórdão 465/2024 – Plenário (rel. Min. Benjamin Zymler)
O TCU concluiu que o critério do § 4º do
art. 59 não gera presunção absoluta de inexequibilidade, mas relativa. A
Administração deve promover diligência e permitir que o licitante justifique o
preço proposto, nos termos do § 2º do art. 59 da
Lei 14.133/2021.
“Diligência
não é luxo: é escudo contra a falsa economia.”
Acórdão 803/2024 – Plenário (rel. Min. Benjamin
Zymler)
A corte analisou edital que impunha a
desclassificação sumária de valores abaixo de 75 %, dispondo que tal critério
não sobrepõe o § 2º: a diligência continua sendo medida indispensável.
Acórdão 2.088/2024 – 2ª Câmara (rel. Min. Augusto Nardes)
Trata-se de representação contra a
desclassificação de proposta por inexequibilidade sem diligência. O TCU
determinou a reabertura da fase de análises, pois a ausência de oportunização à
comprovação da viabilidade frustrou a escolha da proposta mais vantajosa.
Acórdão 214/2025 – Plenário (rel. Min. Jhonatan de Jesus)
Confirmou e consolidou o entendimento: o § 4º
do art. 59 da Lei 14.133/2021 impõe presunção relativa de inexequibilidade,
devendo a Administração garantir a oportunidade ao licitante de demonstrar
exequibilidade da proposta.
E ainda: Acórdão 2378/2024 – Plenário (rel.
Min. Benjamin Zymler), que pela veiculação pública oficial do TCU,
reafirma a interpretação de presunção relativa e impõe a abertura de fase de
diligência para propostas com desconto superior a 25 %, conforme previsto no
art. 59, § 2º, da Lei 14.133/2021.
Riscos e consequências práticas
A escolha da proposta aparentemente mais
barata, sem avaliação técnica robusta, pode acarretar:
·
Paralisações contratuais e aditivos
exorbitantes, onerando o erário.
·
Risco nas garantias requeridas
(art. 59, § 5º da Lei 14.133/2021) quando a proposta é demasiadamente baixa sem
lastro financeiro.
·
Litígios posteriores e
responsabilização por dano ao interesse público.
Contratos mal celebrados geram
litígios revisionais, pedidos de tutela de urgência, descumprimentos
inadimplentes e potencial responsabilização penal de agentes públicos por
improbidade (CF, art. 37, § 4º; Lei 8.429/1992), especialmente quando o menor
preço superficial resulta em dano ao erário.
O princípio da eficiência (art. 37,
caput, CF) exige que a economicidade não descambe para o prejuízo da finalidade
pública. A lógica hermenêutica impõe leitura sistemática entre preço e
viabilidade: menor preço real sem técnica contundente fere os princípios da
moralidade e da finalidade pública.
4. Critérios alternativos ao menor preço: mais
vantajosidade, menos ilusão
Resumo
comparativo entre os critérios previstos na Lei nº 14.133/2021:
Critério |
Quando usar |
Riscos se mal
aplicado |
Menor preço |
Objeto padronizado, ampla concorrência, execução
simples |
Dumping, baixa qualidade |
Maior desconto |
Mesma lógica do menor preço, mas sobre tabela
oficial (ex: SINAPI) |
Subfaturamento ou fraudes |
Técnica e preço |
Contratações complexas: TI, engenharia de ponta,
projetos educacionais |
Subjetividade mal fundamentada |
Melhor técnica |
Casos em que a excelência técnica é mais relevante
que o custo (ex: seleção de pareceristas, criação artística) |
Risco de dirigismo se critérios forem vagos |
Maior retorno econômico |
Contratos de eficiência: PPPs, energia,
performance |
Complexidade de aferição e métricas frágeis |
5. O menor preço não é sinônimo de melhor proposta
Do
mito ao método racional: o critério do menor preço e seus riscos
Em licitações administrativas, o menor preço —
embora frequentemente encarnado como paradigma da economicidade — revela-se um
critério redutor. Ele ignora a complexidade técnica, os critérios de desempenho,
sustentabilidade jurídica e os imperativos do interesse público. Uma proposta
aparentemente imbatível em valor pode, na prática, significar execução
deficitária, risco de aditivos contratuais ou paralisação injustificada do
serviço.
Tal entendimento não é mera especulação: a Lei
nº 14.133/2021 adotou mecanismos para evitar contratações inviáveis ou
prejudiciais à eficiência pública. O art. 59, § 4º prescreve que, em obras e serviços de
engenharia, propostas inferiores a 75% do valor orçado devem ser consideradas inexequíveis,
mas sem cerrar a porta a debate técnico sobre sua viabilidade. O § 2º do mesmo artigo,
por sua vez, assegura o direito (dever) de diligência ou comprovação da
exequibilidade pela licitante.
Jurisprudência recente do TCU: entre a letra e
o espírito da lei
Acórdão 2.198/2023 – Plenário (rel.
Min. Jhonatan de Jesus)
Neste julgamento, o TCU interpretou que o
art. 59, § 4º da Lei 14.133/2021 configura uma presunção absoluta de inexequibilidade, tornando desnecessárias diligências
quando a proposta ficar abaixo de 75% do valor estimado.
Acórdão 465/2024 – Plenário (rel. Min.
Augusto Sherman)
Posteriormente, o Tribunal reviu esse
entendimento, reafirmando a antiga Súmula 262, e declarou que a presunção é relativa. Assim, mesmo em caso de proposta
inferior a 75%, a Administração deve conceder ao licitante a oportunidade
de demonstrar exequibilidade, conforme o § 2º do art. 59.
Acórdão 2088/2024 – Segunda Câmara
(rel. Min. Augusto Nardes)
No mesmo sentido, consolidou-se o entendimento
de que a administração deve abrir fase de diligência, possibilitando a
comprovação da viabilidade da proposta antes de sua desclassificação definitiva.
Essas decisões pós-2020 mostram que menor preço pode ser um “sinal
vermelho”, e que o licitante deve ter chance técnica de
demonstrar que seu valor, por mais enxuto, mantém a exequibilidade diante do
objeto contratual.
6. Licitante
remanescente
É imprescindível que haja uma análise criteriosa
acerca da exequibilidade da proposta apresentada por licitante
remanescente, convocado para assumir o contrato na hipótese de desclassificação do
primeiro colocado, seja por inabilitação, desclassificação da proposta ou
recusa em assinar o contrato.
Sobre esse tema, vide o nosso “Anecessidade de comprovação da exequibilidade da proposta de licitanteremanescente”.
7. Conclusão
O critério do menor preço — se
interpretado isoladamente — assume uma tonalidade perigosa: o da falsa economia. A
adoção de parâmetros objetivos (como o art. 59 da Lei nº 14.133/2021) e a
tutela jurisprudencial recente do TCU (como nos Acórdãos 2.198/2023, 465/2024 e
2088/2024) mostram que o julgamento das propostas deve mesclar análise de VALOR,
viabilidade TÉCNICA e comprovação de EXEQUIBILIDADE, sempre com
vistas ao interesse público.
A jurisprudência do TCU, especialmente
nos acórdãos 465/2024, 803/2024, 2.088/2024, 214/2025 e 2378/2024, consolida
que o art. 59 da Lei 14.133/2021 deve ser interpretado em seu conjunto,
promovendo diligência e garantindo a oportunidade de justificação às propostas
abaixo de 75 % — preservando, assim, o verdadeiro interesse público e a
segurança jurídica dos contratos.
O menor preço, por
si só, não é critério absoluto nem representa garantia de vantajosidade.
A nova Lei de Licitações reforça a ideia de que o julgamento deve considerar
a compatibilidade entre preço, técnica e exequibilidade, em respeito ao
interesse público e à eficiência administrativa.
Em suma: não basta ser o menor preço — é preciso ser o
melhor preço para o objeto, para a gestão e para a sustentabilidade contratual
à frente.
Impende
ressaltar que a Administração Pública deve adotar maior rigor no exame TÉCNICO e
FINANCEIRO das propostas obtidas em licitação, realizando um exame criterioso
dos elementos contidos nas ofertas. Em sede de diligência, deve solicitar, p.
ex., planilhas de formação de preços e custos, contendo todos os encargos trabalhistas
e previdenciários, tributos, insumos, outras planilhas, notas fiscais, os contratos
dos quais resultaram as notas fiscais, memórias de cálculo, descrição dos métodos
de execução, enfim, deve solicitar toda a documentação que ampare os preços formulados.
E, havendo o menor indício de inexequibilidade, deve a Administração
desclassificar, com a maior tranquilidade e segurança, a proposta tida por
inexequível, a fim de afastar o risco de uma contratação desvantajosa para o
erário, desde que o faça de forma devidamente motivada.
Por
fim, cabe ponderar que trata-se de avaliar o custo-benefício da
desclassificação de proposta evidenciada como inexequível: O que é pior? Desclassificar
uma proposta com indícios de inexequibilidade ou enfrentar uma rescisão
unilateral de contrato em razão da inexecução e uma posterior contratação
emergencial, com os prejuízos financeiros e temporais daí resultantes? O órgão enfrentar uma ação judicial
impetrada pela licitante ou o servidor
enfrentar o tribunal de contas no seu encalço? A resposta me parece óbvia: o
pior será sempre a segunda opção. Afinal, é o CPF do servidor público
responsável pelo julgamento que fica na linha de frente... Reflitam... E tendo em vista os inúmeros prejuízos resultantes da cultura do menor preço a qualquer custo, podemos afirmar: o menor preço nem sempre vence!!!
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