A nova Lei de Licitações e Contratos
Administrativos, Lei nº 14.133/2021, substitui os antigos marcos legais que
regulavam as contratações públicas, consolidando um novo regime jurídico
pautado por princípios mais modernos, instrumentos mais robustos de controle e
responsabilização, e maior clareza nos papéis dos agentes públicos. Nesse
contexto, a figura do fiscal de contrato assume papel central na execução
contratual, como guardião da regularidade, da economicidade e da legalidade das
contratações administrativas.
A atividade de fiscalização contratual não é nova na Administração Pública, estando presente tanto na Lei nº 8.666/1993 quanto em normas infralegais e em boas práticas administrativas. Contudo, a nova legislação traz avanços importantes ao detalhar o papel do fiscal, sistematizar suas atribuições e vincular sua atuação a um processo mais profissionalizado e técnico de gestão contratual. Essa mudança decorre da necessidade de aprimorar os controles internos e de garantir que a execução contratual produza resultados efetivos, sem desvios, omissões ou falhas que comprometam o interesse público.
I. O fundamento legal da fiscalização na Lei nº 14.133/2021
A nova Lei de Licitações disciplina a fiscalização contratual nos artigos 117 a 122. O artigo 117 estabelece que a execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um ou mais representantes da Administração especialmente designados. Essa regra consagra o dever de a Administração acompanhar a execução dos contratos firmados, eliminando qualquer margem para omissões ou atuações informais.
O poder-dever de fiscalizar não é uma faculdade da Administração, mas uma imposição legal. A omissão nesse dever pode ensejar responsabilização do ente público e dos agentes designados para tal fim. Assim, a fiscalização não se confunde com atos administrativos esporádicos ou com simples controles documentais; trata-se de uma atividade sistemática, técnica e contínua, orientada pela boa-fé, pela eficiência e pela transparência.
O §1º do artigo 117 prevê que a autoridade competente poderá designar um gestor do contrato, distinto do fiscal, que terá a função de coordenar sua execução e atuar como elo entre a contratada e a Administração. Já o §2º dispõe que, sempre que conveniente, poderá ser designado apoio técnico ou setorial para auxiliar na fiscalização. Essa previsão legitima a atuação compartilhada, multidisciplinar e colaborativa da fiscalização, com divisão de tarefas entre agentes com conhecimentos e atribuições distintas.
II. Atribuições do fiscal de contrato
As atribuições do fiscal de contrato são múltiplas e exigem conhecimento técnico, rigor processual e capacidade de análise crítica. De acordo com a legislação e as boas práticas, cabe ao fiscal acompanhar a execução contratual sob os seguintes aspectos:
1. Verificar se os bens, serviços ou obras estão sendo entregues ou prestados conforme as cláusulas contratuais e os termos do edital.
2.
Registrar a ocorrência de eventuais falhas,
atrasos, inadimplementos ou descumprimentos contratuais.
3.
Solicitar à contratada a correção de vícios e
irregularidades identificadas.
4.
Analisar documentos fiscais, trabalhistas e
previdenciários, nos casos em que o contrato exigir.
5.
Comunicar tempestivamente ao gestor do contrato
qualquer fato que possa comprometer a boa execução contratual.
6.
Elaborar relatórios de fiscalização, com registro
formal de todas as ocorrências relevantes.
7.
Sugerir a aplicação de sanções, quando cabível, com
base em documentação e pareceres técnicos.
8. Participar de reuniões de acompanhamento e alinhamento contratual.
Tais atividades
demandam que o fiscal atue com isenção, diligência, clareza técnica e espírito
de colaboração. A atuação não pode ser meramente formal ou protocolar; deve ser
efetiva e voltada à garantia da plena satisfação do interesse público.
III. Atribuições compartilhadas: gestor, fiscais e apoio técnico
A Lei nº 14.133/2021 estabelece uma divisão clara e funcional entre os papéis do gestor do contrato, do fiscal e dos apoios técnicos. O gestor tem como função coordenar a execução global do contrato, interagir formalmente com a contratada, consolidar informações dos diversos fiscais e tomar decisões administrativas relevantes. Já os fiscais atuam em áreas específicas: fiscalização técnica, fiscalização administrativa, fiscalização local, entre outras, dependendo do objeto do contrato.
Esse modelo descentralizado favorece a especialização das tarefas e proporciona maior segurança jurídica ao processo de fiscalização. Por exemplo, o fiscal técnico pode ser um engenheiro que avalia a conformidade de uma obra, enquanto o fiscal administrativo confere a documentação de regularidade fiscal e trabalhista.
A atuação dos diversos fiscais deve ser harmoniosa e integrada, com comunicação constante com o gestor do contrato.
O apoio técnico ou setorial pode incluir profissionais de TI, engenheiros, arquitetos, advogados, médicos ou qualquer outro especialista necessário à correta avaliação da execução do objeto contratual. Essa possibilidade reconhece a complexidade das contratações públicas e a necessidade de suporte técnico para decisões mais seguras.
IV. Instrumentos e práticas de fiscalização
Para garantir eficácia na fiscalização contratual, é fundamental que a Administração utilize instrumentos de planejamento, controle e registro. Entre os principais mecanismos destacam-se:
· Plano de fiscalização: documento que define os critérios, indicadores, frequência e métodos de fiscalização do contrato.
·
Checklists operacionais: auxiliam no acompanhamento
sistemático das obrigações contratuais.
·
Relatórios de fiscalização: registros periódicos
das atividades e ocorrências relevantes.
·
Sistema informatizado de gestão de contratos:
ferramenta que centraliza documentos, prazos, notificações e alertas.
·
Reuniões de acompanhamento: encontros periódicos
entre gestor, fiscais e contratada para ajustes e alinhamentos.
· Registro fotográfico ou audiovisual: documentação de evidências da execução ou de irregularidades.
A adoção desses instrumentos contribui para a
padronização das atividades, o aumento da transparência, a segurança jurídica e
a rastreabilidade das decisões.
V. Responsabilidade do fiscal de contrato
O fiscal de contrato pode ser responsabilizado por omissão, negligência ou dolo no exercício de suas funções. Tal responsabilização pode ocorrer nas esferas administrativa, civil e até penal, a depender da gravidade da conduta e do prejuízo causado à Administração Pública.
“O
fiscal de contrato, especialmente
designado para o acompanhamento da obra, pode ser responsabilizado quando se
omite na adoção de medidas necessárias à manutenção do ritmo de execução normal
do empreendimento.” (TCU
- Acórdão 2296/2019-Plenário - Relator: ANDRÉ DE CARVALHO)
Contudo, é importante destacar que o fiscal não responde por atos que estejam fora do seu alcance ou que não lhe tenham sido comunicados. Sua responsabilidade é limitada às atividades que lhe foram formalmente atribuídas, mediante designação expressa e capacitação adequada. Além disso, a atuação do fiscal deve ser sempre documentada, a fim de garantir sua segurança jurídica em eventuais processos de apuração de responsabilidades.
“O fiscal do contrato não pode ser responsabilizado caso não
lhe sejam oferecidas condições apropriadas para o desempenho de suas
atribuições. Na interpretação das normas de gestão pública, deverão ser
considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências
das políticas públicas a seu cargo (art. 22, caput, do Decreto-lei
4.657/1942 - Lei
de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).” (TCU - Acórdão 2973/2019-Segunda Câmara - Relator: ANA ARRAES)
Por outro lado, a ausência de designação formal ou a inércia da Administração em capacitar e apoiar seus fiscais também pode ensejar responsabilidade da própria entidade pública. A estruturação dos controles internos e a formação contínua dos agentes são medidas indispensáveis à boa governança contratual.
VI. Capacitação e valorização dos fiscais
Um dos principais desafios enfrentados pelos entes públicos na implementação da nova lei é a formação de uma cultura de profissionalização da fiscalização contratual. Muitos servidores públicos são designados como fiscais sem a devida preparação técnica, sem apoio institucional e sem um arcabouço normativo interno que oriente sua atuação.
A capacitação dos fiscais deve incluir conteúdos sobre:
· Legislação de contratos administrativos;
·
Responsabilidades funcionais;
·
Técnicas de fiscalização;
·
Elaboração de relatórios;
·
Utilização de sistemas eletrônicos de gestão;
·
Comunicação e relacionamento com contratadas.
Além da capacitação técnica, é essencial que os fiscais sejam valorizados pela Administração, com o reconhecimento formal da importância estratégica de sua função. A fiscalização não é uma tarefa meramente operacional, mas um dos pilares da integridade, da conformidade e da eficácia das políticas públicas.
VII. A importância da fiscalização para o controle e a governança
A fiscalização contratual tem papel fundamental no controle interno da Administração Pública. Sua atuação permite a detecção precoce de desvios, o saneamento de irregularidades, a responsabilização de contratadas inadimplentes e o fornecimento de dados essenciais para auditorias e avaliações de desempenho.
Além disso, os relatórios elaborados pelos fiscais servem como base para decisões sobre prorrogação, renovação, reequilíbrio econômico-financeiro e aplicação de penalidades. A ausência desses registros pode comprometer todo o ciclo contratual e gerar nulidades em processos administrativos.
A governança pública exige que os contratos sejam acompanhados de forma ativa e planejada. A atuação eficiente dos fiscais contribui para a realização dos objetivos institucionais e para a correta aplicação dos recursos públicos. Portanto, mais do que uma obrigação legal, a fiscalização contratual é um instrumento de gestão estratégica.
VIII. Considerações finais
A figura do fiscal de contrato ganha centralidade no novo regime jurídico de contratações públicas instituído pela Lei nº 14.133/2021. Sua atuação, agora expressamente normatizada, constitui uma das principais garantias de que a execução dos contratos administrativos se dará conforme os princípios constitucionais e legais que regem a Administração Pública.
Ao delimitar com clareza os papéis do fiscal, do gestor e dos apoios técnicos, a nova lei proporciona maior segurança jurídica, padronização de práticas e incentivo à profissionalização da fiscalização. Contudo, a eficácia desse novo modelo depende de investimentos em capacitação, estrutura de controle interno, sistemas informatizados e valorização dos servidores públicos envolvidos.
Em suma, o fiscal de contrato é um agente indispensável à boa gestão pública. Cabe à Administração prover os meios e o suporte para que ele possa cumprir sua função com técnica, responsabilidade e integridade. Assim, será possível avançar rumo a uma Administração mais eficiente, transparente e comprometida com o interesse público.