A licitação
pública, enquanto procedimento administrativo destinado à seleção da proposta
mais vantajosa para a Administração, não se confunde — nem jamais deveria ser
tratada — como uma gincana jurídico-burocrática. No entanto, é crescente a
prática de transmutar um instrumento eminentemente finalístico e estratégico em
um concurso de “quem entrega papel mais rápido”, “quem entende melhor o edital”
ou, pior, “quem baixa mais o preço”. Tal deturpação revela um esvaziamento dos
fundamentos que justificam o regime jurídico diferenciado das contratações
públicas, distanciando o gestor do interesse público que deve reger sua
atuação.
1. A
supremacia do resultado e o declínio da formalidade excessiva
A Lei nº
14.133/2021 foi clara ao inaugurar um modelo orientado por eficiência, governança
e planejamento, substituindo a antiga cultura do carimbo pela lógica da decisão
fundamentada e orientada a resultados. O art. 11, caput, da nova lei é
incisivo ao afirmar:
“Na
aplicação desta Lei, será observado, entre outros, o princípio do planejamento,
o qual consiste na atuação estatal baseada em objetivos definidos, por meio de
planos, programas e políticas públicas”.
Nesse cenário, a
obsessão por formalidades meramente instrumentais, ainda que com aparência
de legalidade, tem levado à inabilitação de licitantes e à desclassificação de
propostas por motivos que não guardam relação com o cerne do certame: a
obtenção da proposta mais vantajosa.
O TCU, em
diversas oportunidades, tem advertido contra o excesso de formalismo,
especialmente quando incompatível com a busca do interesse público. No Acórdão
nº 21.217/2023 /2013 – Plenário, p. ex., o relator Min. Benjamin Zymler deixou
claro:
“É irregular a
desclassificação de proposta vantajosa à Administração por erros formais ou
vícios sanáveis por meio de diligência, em face dos princípios do formalismo moderado
e da supremacia do interesse público, que permeiam os processos licitatórios.”
2. A
licitação não é corrida de obstáculos, é julgamento técnico e jurídico
Em muitos certames,
especialmente sob a modalidade pregão, nota-se uma tendência crescente à valorização
de critérios puramente matemáticos e objetivos, em detrimento da análise
crítica da proposta. Essa lógica transforma o processo licitatório numa espécie
de competição de performance automatizada, afastando o julgador da sua função
técnica e interpretativa.
O problema se
agrava com a má interpretação dos critérios de julgamento. A regra do menor
preço, por exemplo, não pode ser interpretada isoladamente. O art. 59, §
2º, da Lei nº 14.133/21, prescreve que, ao realizar o julgamento, a “Administração
poderá realizar diligências para aferir a exequibilidade das propostas ou
exigir dos licitantes que ela seja demonstrada.”
A aplicação literal
e descontextualizada desse critério conduz ao fenômeno da “gincana do menor
preço”, gerando contratações insustentáveis e passíveis de frustração
contratual. O STJ, ao julgar o RMS 41.421/SP, entendeu que:
“A
inexequibilidade não se presume apenas pelo valor abaixo da média, sendo
imprescindível analisar o caso concreto, especialmente a capacidade técnica e
econômica do proponente para executar o contrato”.
3. O edital
não é oráculo: é instrumento de controle e de legalidade
Outro vício
recorrente é a leitura mística do edital, como se o texto do instrumento
convocatório fosse um código indecifrável, acessível apenas a iniciados, ou uma
peça autossuficiente que prescinde de interpretação sistemática com a
legislação vigente. Essa prática fomenta o elitismo interpretativo,
excluindo proponentes tecnicamente capazes, mas que não decifraram a “charada”
contida em determinada cláusula ambígua.
A jurisprudência é
firme ao rechaçar esse reducionismo. O TRF6, em julgado recente (ApCiv
1003764-35.2023.4.06.3800/MG), reconheceu a nulidade de ato de inabilitação
baseado em interpretação restritiva e contraditória do edital, enfatizando que:
“A
interpretação do instrumento convocatório deve observar os princípios da
razoabilidade, da proporcionalidade e da competitividade, de modo a evitar a
exclusão indevida de licitantes”.
Nesse sentido, o
edital deve ser compatível com os princípios do art. 5º da Lei nº 14.133/21,
especialmente com os princípios da isonomia, do julgamento objetivo e da
segurança jurídica. Não se trata de criar armadilhas hermenêuticas, mas sim de
assegurar acesso isonômico e transparente à disputa.
4. A
proposta mais vantajosa exige juízo de mérito técnico-administrativo
A proposta mais
vantajosa não se resume à menor despesa contratual. Implica análise
qualitativa, exame de riscos, confiabilidade do licitante, sustentabilidade da
execução e impacto no interesse público. Essa análise não pode ser
automatizada nem relegada ao robô de lances, especialmente em contratações
complexas.
O TCU, no Acórdão
nº 1.687/2015 – Plenário, já alertava para os perigos da “competitividade
destrutiva”:
“A
competição meramente formal, sem critério efetivo de qualificação técnica e de
análise de viabilidade, compromete a economicidade do contrato e afronta o
interesse público”.
Portanto, o
julgamento de propostas exige maturidade institucional, capacitação técnica
e coragem decisória, elementos incompatíveis com a lógica da gincana.
5. Caminhos
para a superação do modelo superficial
A superação do
paradigma da gincana exige ação coordenada entre Administração, controle
e mercado. Algumas medidas são essenciais:
- Fortalecer o planejamento e a gestão por competências nas comissões
de contratação.
- Incluir nos editais critérios técnicos realistas, com margem de
discricionariedade motivada.
- Valorizar pareceres técnicos e memoriais descritivos na análise de
propostas.
- Reprimir formalismos inúteis, conforme art. 147, §1º, da Lei nº
14.133/21.
- Capacitar julgadores para que exerçam, com segurança jurídica, o
julgamento técnico e motivado.
Considerações
finais
A licitação não é
um ritual litúrgico nem um torneio de papéis. É um instrumento de Estado,
cujo propósito é assegurar que cada centavo gasto pelo Poder Público produza o
maior valor possível para a sociedade. Tratar o procedimento como uma
gincana é trair esse propósito — e, mais grave ainda, é institucionalizar a
mediocridade sob o pretexto da legalidade.
Como bem afirmou o
Min. Benjamin Zymler, em conferência proferida no TCU:
“A forma
deve servir ao conteúdo; o procedimento deve servir à boa decisão. Quando
invertemos essa lógica, destruímos a legitimidade do controle e da contratação
pública.”
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