segunda-feira, 21 de julho de 2025

Licitação não é gincana


 

A licitação pública, enquanto procedimento administrativo destinado à seleção da proposta mais vantajosa para a Administração, não se confunde — nem jamais deveria ser tratada — como uma gincana jurídico-burocrática. No entanto, é crescente a prática de transmutar um instrumento eminentemente finalístico e estratégico em um concurso de “quem entrega papel mais rápido”, “quem entende melhor o edital” ou, pior, “quem baixa mais o preço”. Tal deturpação revela um esvaziamento dos fundamentos que justificam o regime jurídico diferenciado das contratações públicas, distanciando o gestor do interesse público que deve reger sua atuação.

1. A supremacia do resultado e o declínio da formalidade excessiva

A Lei nº 14.133/2021 foi clara ao inaugurar um modelo orientado por eficiência, governança e planejamento, substituindo a antiga cultura do carimbo pela lógica da decisão fundamentada e orientada a resultados. O art. 11, caput, da nova lei é incisivo ao afirmar:

“Na aplicação desta Lei, será observado, entre outros, o princípio do planejamento, o qual consiste na atuação estatal baseada em objetivos definidos, por meio de planos, programas e políticas públicas”.

Nesse cenário, a obsessão por formalidades meramente instrumentais, ainda que com aparência de legalidade, tem levado à inabilitação de licitantes e à desclassificação de propostas por motivos que não guardam relação com o cerne do certame: a obtenção da proposta mais vantajosa.

O TCU, em diversas oportunidades, tem advertido contra o excesso de formalismo, especialmente quando incompatível com a busca do interesse público. No Acórdão nº 21.217/2023 /2013 – Plenário, p. ex., o relator Min. Benjamin Zymler deixou claro:

“É irregular a desclassificação de proposta vantajosa à Administração por erros formais ou vícios sanáveis por meio de diligência, em face dos princípios do formalismo moderado e da supremacia do interesse público, que permeiam os processos licitatórios.”

2. A licitação não é corrida de obstáculos, é julgamento técnico e jurídico

Em muitos certames, especialmente sob a modalidade pregão, nota-se uma tendência crescente à valorização de critérios puramente matemáticos e objetivos, em detrimento da análise crítica da proposta. Essa lógica transforma o processo licitatório numa espécie de competição de performance automatizada, afastando o julgador da sua função técnica e interpretativa.

O problema se agrava com a má interpretação dos critérios de julgamento. A regra do menor preço, por exemplo, não pode ser interpretada isoladamente. O art. 59, § 2º, da Lei nº 14.133/21, prescreve que, ao realizar o julgamento, a “Administração poderá realizar diligências para aferir a exequibilidade das propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada.”

A aplicação literal e descontextualizada desse critério conduz ao fenômeno da “gincana do menor preço”, gerando contratações insustentáveis e passíveis de frustração contratual. O STJ, ao julgar o RMS 41.421/SP, entendeu que:

“A inexequibilidade não se presume apenas pelo valor abaixo da média, sendo imprescindível analisar o caso concreto, especialmente a capacidade técnica e econômica do proponente para executar o contrato”.

3. O edital não é oráculo: é instrumento de controle e de legalidade

Outro vício recorrente é a leitura mística do edital, como se o texto do instrumento convocatório fosse um código indecifrável, acessível apenas a iniciados, ou uma peça autossuficiente que prescinde de interpretação sistemática com a legislação vigente. Essa prática fomenta o elitismo interpretativo, excluindo proponentes tecnicamente capazes, mas que não decifraram a “charada” contida em determinada cláusula ambígua.

A jurisprudência é firme ao rechaçar esse reducionismo. O TRF6, em julgado recente (ApCiv 1003764-35.2023.4.06.3800/MG), reconheceu a nulidade de ato de inabilitação baseado em interpretação restritiva e contraditória do edital, enfatizando que:

“A interpretação do instrumento convocatório deve observar os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da competitividade, de modo a evitar a exclusão indevida de licitantes”.

Nesse sentido, o edital deve ser compatível com os princípios do art. 5º da Lei nº 14.133/21, especialmente com os princípios da isonomia, do julgamento objetivo e da segurança jurídica. Não se trata de criar armadilhas hermenêuticas, mas sim de assegurar acesso isonômico e transparente à disputa.

4. A proposta mais vantajosa exige juízo de mérito técnico-administrativo

A proposta mais vantajosa não se resume à menor despesa contratual. Implica análise qualitativa, exame de riscos, confiabilidade do licitante, sustentabilidade da execução e impacto no interesse público. Essa análise não pode ser automatizada nem relegada ao robô de lances, especialmente em contratações complexas.

O TCU, no Acórdão nº 1.687/2015 – Plenário, já alertava para os perigos da “competitividade destrutiva”:

“A competição meramente formal, sem critério efetivo de qualificação técnica e de análise de viabilidade, compromete a economicidade do contrato e afronta o interesse público”.

Portanto, o julgamento de propostas exige maturidade institucional, capacitação técnica e coragem decisória, elementos incompatíveis com a lógica da gincana.

5. Caminhos para a superação do modelo superficial

A superação do paradigma da gincana exige ação coordenada entre Administração, controle e mercado. Algumas medidas são essenciais:

  • Fortalecer o planejamento e a gestão por competências nas comissões de contratação.
  • Incluir nos editais critérios técnicos realistas, com margem de discricionariedade motivada.
  • Valorizar pareceres técnicos e memoriais descritivos na análise de propostas.
  • Reprimir formalismos inúteis, conforme art. 147, §1º, da Lei nº 14.133/21.
  • Capacitar julgadores para que exerçam, com segurança jurídica, o julgamento técnico e motivado.

Considerações finais

A licitação não é um ritual litúrgico nem um torneio de papéis. É um instrumento de Estado, cujo propósito é assegurar que cada centavo gasto pelo Poder Público produza o maior valor possível para a sociedade. Tratar o procedimento como uma gincana é trair esse propósito — e, mais grave ainda, é institucionalizar a mediocridade sob o pretexto da legalidade.

Como bem afirmou o Min. Benjamin Zymler, em conferência proferida no TCU:

“A forma deve servir ao conteúdo; o procedimento deve servir à boa decisão. Quando invertemos essa lógica, destruímos a legitimidade do controle e da contratação pública.”


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