sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Principais Erros na Licitação que Afetam a Execução do Contrato

 


A licitação pública, esse complexo ritual para a contratação de bens e serviços pelo Estado, muitas vezes é vista como um mero formalismo burocrático. No entanto, sua verdadeira essência é a de ser o alicerce de uma relação contratual que, se mal construída, desaba sobre as partes envolvidas, deixando um rastro de prejuízos.

Se o edital é mal concebido, se a proposta é deficitária ou se as partes se movem em um ambiente de incertezas, o fracasso é apenas uma questão de tempo.

A seguir, abordaremos os erros mais comuns cometidos na fase licitatória que se projetam na execução do contrato, gerando consequências financeiras e jurídicas devastadoras para a Administração Pública e para o licitante vencedor.

1. A Falha de Planejamento da Administração: O Embrião de Futuros Prejuízos

A Administração Pública, muitas vezes, peca por um planejamento inadequado na fase interna da licitação. Um edital mal redigido, com especificações técnicas vagas, incompletas ou excessivas, é o reflexo de um estudo técnico preliminar superficial. Essa falha de planejamento é a semente de inúmeros problemas durante a execução.

Quando o edital não reflete a realidade da necessidade, surgem as alterações contratuais. O art. 125 da Lei nº 14.133/21 prevê a possibilidade de alteração unilateral do contrato pela Administração para suprimir ou acrescer o objeto, respeitando os limites de 25%. A falta de planejamento, porém, transforma essa prerrogativa em um mecanismo de prejuízo, com o aumento de quantitativos inicialmente subdimensionados, gerando custos adicionais e a necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro.

A Lei nº 14.133/21, em seu Art. 124, § 1º, é ainda mais clara:

“Art. 124. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:

(...)

§ 1º Se forem decorrentes de falhas de projeto, as alterações de contratos de obras e serviços de engenharia ensejarão apuração de responsabilidade do responsável técnico e adoção das providências necessárias para o ressarcimento dos danos causados à Administração.

(...)”

A jurisprudência do STJ é firme em reconhecer o direito ao reequilíbrio. No REsp 1.258.970/RS, o Tribunal reconheceu o direito da empresa contratada a reaver os custos decorrentes de atrasos na liberação de áreas para a execução de obra pública, causados por omissão da Administração.

Segundo Diogenes Gasparini em (Direito Administrativo, Saraiva, 2018, 23ª ed., p. 574), "o reequilíbrio econômico-financeiro é uma garantia de que o contratado não terá seu lucro comprometido por eventos que fujam ao seu controle e que afetem a equação original do contrato. É a manutenção do pacto de mútuo consentimento."

2. Prejuízos Decorrentes da Proposta Inexequível: O Perigo da "Corrida para o Fundo"

Muitas empresas, seduzidas pela ambição de vencer, ofertam propostas que, em sua essência, são irrealizáveis. A proposta inexequível, ou seja, aquela que não permite cobrir os custos e ainda gerar lucro, é um dos principais problemas enfrentados pela Administração Pública e pelo particular. O licitante que a apresenta, na tentativa de vencer a concorrência a qualquer custo, acaba assinando a sua própria sentença de morte. E a Administração, que a aceita, compromete a execução contratual, expõe-se a riscos de inadimplemento, rescisão antecipada, paralisação do serviço e necessidade de nova contratação emergencial, além de violar o princípio do equilíbrio econômico-financeiro.

A Lei nº 14.133/2021, em seu art. 59, III, inclusive, estabelece que propostas com valores "manifestamente inexequíveis" devem ser desclassificadas.

Não é demais ressaltar que a inexequibilidade da proposta pode levar à rescisão unilateral do contrato pela Administração, com a aplicação das sanções previstas no art. 156 da Lei nº 14.133/21.

O Tribunal de Contas da União (TCU), em sua vasta jurisprudência, já abordou a questão da inexequibilidade. No Acórdão nº 2258/2012-Plenário, o Tribunal destacou que a verificação de inexequibilidade deve ser objetiva, baseada em elementos técnicos, e não meramente subjetiva. A ementa do acórdão ressalta o seguinte:

“A desclassificação de proposta por inexequibilidade deve ser objetivamente demonstrada, a partir de critérios previamente publicados, devendo, ainda, ser franqueada a oportunidade de cada licitante defender a sua proposta, antes da adoção da medida.” (Acórdão 2528/2012-Plenário, Relator: André de Carvalho)

Assim se manifesta Marçal Justen Filho:

“O tema comporta uma ressalva prévia sobre a impossibilidade de eliminação de propostas vantajosas para o interesse sob tutela do Estado. A desclassificação por inexequibilidade apenas pode ser admitida como exceção, em hipóteses muito restritas. O núcleo da concepção ora adotada reside na impossibilidade de o Estado transformar-se em fiscal da lucratividade privada e na plena admissibilidade de propostas deficitárias.

No entanto, essa orientação deve ser entendida em termos. Existe determinação legislativa explícita que exige a desclassificação das propostas cujo valor não seja suficiente para assegurar a satisfação dos custos inerentes à sua execução.” (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 18ª ed., 2019, editora Revista dos Tribunais, p. 1101) (grifos nossos)

3. Falha na Fiscalização e a Baixa Qualidade na Execução

A negligência na fiscalização da execução contratual é uma das maiores falhas que podem levar a uma cascata de prejuízos. A fiscalização, que deveria ser um processo contínuo e rigoroso, muitas vezes é tratada como uma formalidade, permitindo que o contratado preste serviços ou forneça bens de baixa qualidade.

A falta de fiscalização pode resultar na aceitação de produtos ou serviços que não atendem às especificações do edital, gerando um prejuízo direto à Administração. O art. 117 da Lei nº 14.133/21 estabelece que a execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração, mas não basta a sua nomeação. É preciso que a fiscalização seja efetiva.

O Tribunal de Contas da União (TCU) assim se manifestou em relação a determinado caso concreto:

“40. Além disso, a correta fiscalização dos pagamentos parcelados protege a Administração contra inadimplementos acidentais, duplicidades de pagamento, ou mesmo fraudes, que podem ser mais difíceis de detectar em contratos com múltiplas parcelas. Também permite que o órgão identifique eventuais riscos de inadimplência futura por insuficiência de dotação orçamentária ou por conflito com outros compromissos financeiros assumidos. Esse controle exige, portanto, a integração entre o setor responsável pela gestão contratual e as unidades de orçamento, finanças e contabilidade, de modo a garantir que os pagamentos ocorram dentro dos limites legais e das disponibilidades financeiras do órgão público. A ausência dessa fiscalização atenta contra os princípios da eficiência, do controle interno e da boa governança pública, podendo ensejar responsabilização do agente público por omissão ou falha na condução contratual.” (Acórdão 1717/2025 – Plenário, Relator: Ministro Jorge Oliveira)

A doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello em "Curso de Direito Administrativo" (Malheiros, 2019, 34ª ed., p. 651) aponta que "a fiscalização do contrato administrativo é um dever-poder da Administração Pública, que deve ser exercido com rigor, de modo a garantir que o objeto contratado seja executado conforme as especificações e os padrões de qualidade exigidos."

4. Riscos Trabalhistas: A Responsabilidade Subsidiária e Solidária

Muitas empresas que participam de licitações subcontratam serviços ou mão de obra. No entanto, a negligência na seleção e fiscalização dessas subcontratadas pode levar a sérios prejuízos trabalhistas, principalmente em um cenário de responsabilidade subsidiária ou, em casos mais graves, solidária da Administração.

A principal diferença entre responsabilidades solidária e subsidiária reside no fato de que na primeira vários devedores respondem pela mesma dívida, sem a necessidade de se observar uma ordem de preferência, e o credor pode cobrar qualquer um deles pela totalidade da dívida. Já a responsabilidade subsidiária envolve um devedor principal que responde primeiro, e apenas se ele não cumprir a obrigação é que um segundo devedor, chamado de subsidiário, será acionado para pagar a dívida.

O Tribunal Superior do Trabalho (TST), por meio da Súmula nº 331, pacificou o entendimento de que a responsabilidade da Administração Pública é subsidiária em relação às obrigações trabalhistas da empresa contratada, desde que comprovada sua conduta culposa na fiscalização do contrato.

A Súmula nº 331, V, do TST é taxativa: "Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei nº 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da contratada como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada."

A falha na fiscalização não é apenas um problema administrativo, mas uma falha que pode levar a um litígio judicial e a condenação do ente público.

A doutrina de Alexandre Mazza em sua obra "Manual de Direito Administrativo" (Saraiva, 2022, 12ª ed., p. 645) ressalta que "a responsabilidade subsidiária da Administração Pública, consagrada pela Súmula 331 do TST, não é automática. É preciso que se demonstre a culpa in vigilando, ou seja, a negligência da Administração na fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas da empresa contratada."

5. Contratação Emergencial sem Justificativa Plausível: O Atalho que Leva ao Abismo

A contratação emergencial, prevista no art. 75, VIII, da Lei nº 14.133/21, é uma ferramenta excepcional, a ser usada apenas em situações que coloquem em risco a segurança de pessoas, obras, bens, serviços ou que comprometam a continuidade do serviço público. No entanto, o uso indevido dessa modalidade, muitas vezes, é resultado de uma licitação mal planejada ou fracassada.

A rescisão de um contrato, seja por culpa da contratada ou da Administração, pode criar uma situação de emergência. A contratação emergencial, nesse caso, é uma consequência do erro, e não a causa. O problema surge quando a emergência é forjada ou quando a Administração não se planejou para a eventualidade, recorrendo ao contrato emergencial sem a devida justificativa.

O TCU, no Acórdão nº 1717/2022-Plenário, é categórico ao afirmar que:

“38. Oportuno destacar que a inteligência do art. 24, inciso IV (atual art. 75, VIII, da Lei 14.133/2021), da Lei de Licitações e Contratos possivelmente desejava coibir os gestores públicos do uso [abusivo] de contratações emergenciais por dispensa de licitação devido a situações de emergência provocadas até mesmo por sua própria inépcia, negligência, desídia administrativa, falha de planejamento ou má gestão, gerando, assim, a 'situação de emergência fabricada'. Repise-se que, caso não fosse necessária a real situação de emergência ou o real estado de calamidade pública, decretado por ente federativo com a competência dada por força normativa, qualquer agente público poderia invocar o inciso IV do art. 24 da Lei 8.666/1993 para realizar contratações por dispensa de licitação sem a devida fundamentação.” (Acórdão 1717/2022 – Plenário, Ministro Jorge Oliveira)

Para Gustavo Henrique Justino de Oliveira em sua obra "Direito Administrativo Sancionador" (Saraiva, 2020, 5ª ed., p. 211), "a contratação emergencial é uma exceção à regra geral da licitação, e sua aplicação deve ser rigorosamente justificada, sob pena de nulidade do ato e de responsabilização dos agentes públicos. A emergência deve ser real e imprevisível, e não pode ter sido criada pela desídia ou falta de planejamento da Administração."

6. Prejuízos Decorrentes da Judicialização de Controvérsias: O Custo do Litígio

A judicialização de controvérsias decorrentes de contratos administrativos é um dos maiores prejuízos, tanto para a Administração quanto para a empresa. A falta de um diálogo efetivo, de um edital claro e de uma fiscalização competente leva as partes a buscarem o Poder Judiciário para resolver seus problemas.

A judicialização gera custos financeiros com honorários advocatícios, custas processuais e, em caso de derrota, o pagamento de indenizações. Além disso, o tempo do processo judicial prolonga a incerteza e pode comprometer a continuidade de um serviço público essencial. Os arts. 151 a 154 da Lei nº 14.133/21 preveem a possibilidade de adoção de meios alternativos de solução de controvérsias, como a conciliação e a mediação, mas a falta de planejamento e a má-fé das partes podem inviabilizar essa solução.

A jurisprudência do STJ é repleta de casos de judicialização de contratos administrativos, evidenciando o quão comum se tornou a busca pela solução judicial. No REsp 1.749.569/RJ, o Tribunal discutiu a validade de uma cláusula de reajuste contratual em um contrato administrativo, ressaltando que "as cláusulas contratuais devem ser claras e objetivas, de modo a evitar a judicialização de controvérsias e a insegurança jurídica das partes."

Maria Sylvia Zanella Di Pietro em "Direito Administrativo" (Atlas, 2021, 34ª ed., p. 621) ressalta que "a judicialização dos contratos administrativos é o reflexo de um problema maior: a falha no planejamento e na gestão pública. A Administração, ao não agir com a devida cautela na fase de licitação e na execução do contrato, cria um ambiente propício para o litígio."

7. Prejuízos Financeiros Decorrentes de Multas e Impedimento de Licitar: A Marca da Inidoneidade

A inexecução total ou parcial do contrato, bem como o descumprimento de cláusulas essenciais, acarreta a aplicação de sanções administrativas. Multas contratuais, além de penalidades mais graves como o impedimento de licitar, são o preço da negligência.

O art. 156 da Lei nº 14.133/21 prevê um rol de sanções, desde advertência até a declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública. A aplicação dessas sanções exige um devido processo legal, com direito à ampla defesa e ao contraditório. O inciso III do Art. 87 da Lei nº 8.666/93 previa a suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos. A Lei nº 14.133/21 aprofundou as sanções, com o Art. 156, § 4º, estabelecendo o impedimento de licitar e contratar em âmbito federal, estadual, distrital e municipal pelo prazo máximo de 3 (anos) anos.

A jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), consubstanciada na Apelação Cível nº 0003013-17.2013.4.01.3800, confirmou a legalidade da aplicação de multa e suspensão do direito de licitar a uma empresa que descumpriu cláusulas contratuais. O acórdão ressaltou: “A aplicação das sanções previstas na lei de licitações e contratos administrativos decorre do poder-dever da Administração de fiscalizar e garantir o cumprimento do pactuado, sendo medida necessária para assegurar o interesse público.”

Jessé Torres Pereira Junior em sua obra "Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos" (Renovar, 2018, 11ª ed., p. 892) afirma que "a aplicação de sanções administrativas, embora pareça uma medida de punição, é, na verdade, um instrumento para a manutenção da ordem e do equilíbrio na relação contratual administrativa. A punição, quando justa, serve de exemplo e desestimula a má conduta."

8. Redução da Credibilidade da Empresa: O Custo Oculto do Prejuízo

Além das sanções formais, os erros na licitação e na execução do contrato geram um prejuízo invisível, mas devastador: a perda de credibilidade e reputação no mercado. Uma empresa que não cumpre seus contratos, que é alvo de sanções ou que está envolvida em litígios, é vista com desconfiança por clientes, fornecedores e parceiros.

A reputação é um ativo intangível. Uma vez manchada, pode levar anos para ser recuperada. No mercado privado, uma empresa que perde a credibilidade não consegue mais fechar novos contratos. No setor público, a situação é similar: embora possa participar de licitações, a má reputação pode ser um fator decisivo na decisão da Administração em não contratar novamente. O art. 68 da Lei nº 14.133/2021 exige a comprovação de regularidade fiscal e trabalhista. Uma empresa com problemas judiciais pode ter sua regularidade afetada, inviabilizando sua participação em novos certames.

A Administração deve redobrar a atenção na fase de habilitação e se valer de mecanismos de due diligence para avaliar a idoneidade das empresas concorrentes. A análise da capacidade técnica e econômico-financeira de uma empresa não deve se restringir aos documentos formais, mas também incluir a avaliação de seu histórico de desempenho e reputação.

9. Conclusão

A licitação é o ponto de partida de uma jornada contratual que, se bem planejada, tem tudo para ser bem-sucedida. Os prejuízos decorrentes dos erros na fase de licitação são a prova de que a Administração deve agir com a máxima diligência, e as empresas devem ser realistas em suas propostas. A transparência, a honestidade e o planejamento são os pilares para evitar os erros que levam ao prejuízo. O contrato, no final das contas, é um reflexo do edital. Se o edital é uma bagunça, o contrato será um caos.

Um edital falho, a insuficiência de exigências de qualificação econômico-financeira e capacidade técnica, uma proposta inexequível ou deficiente, e, posteriormente, a ausência de fiscalização ou a negligência na escolha dos parceiros são como vírus que se instalam no corpo do contrato e o levam à falência. A solução para esses problemas reside no planejamento meticuloso, na transparência das ações e na responsabilidade de todos os envolvidos.


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