A licitação pública, esse complexo ritual para a contratação de bens e serviços pelo Estado, muitas vezes é vista como um mero formalismo burocrático. No entanto, sua verdadeira essência é a de ser o alicerce de uma relação contratual que, se mal construída, desaba sobre as partes envolvidas, deixando um rastro de prejuízos.
Se o edital é mal
concebido, se a proposta é deficitária ou se as partes se movem em um ambiente
de incertezas, o fracasso é apenas uma questão de tempo.
A seguir,
abordaremos os erros mais comuns cometidos na fase licitatória que se projetam
na execução do contrato, gerando consequências financeiras e jurídicas
devastadoras para a Administração Pública e para o licitante vencedor.
1. A Falha
de Planejamento da Administração: O Embrião de Futuros Prejuízos
A Administração
Pública, muitas vezes, peca por um planejamento inadequado na fase interna da
licitação. Um edital mal redigido, com especificações técnicas vagas,
incompletas ou excessivas, é o reflexo de um estudo técnico preliminar
superficial. Essa falha de planejamento é a semente de inúmeros problemas
durante a execução.
Quando o edital não
reflete a realidade da necessidade, surgem as alterações contratuais. O art.
125 da Lei nº 14.133/21 prevê a possibilidade de alteração unilateral do
contrato pela Administração para suprimir ou acrescer o objeto, respeitando os
limites de 25%. A falta de planejamento, porém, transforma essa prerrogativa em
um mecanismo de prejuízo, com o aumento de quantitativos inicialmente
subdimensionados, gerando custos adicionais e a necessidade de reequilíbrio
econômico-financeiro.
A Lei nº 14.133/21,
em seu Art. 124, § 1º, é ainda mais clara:
“Art. 124. Os contratos regidos por esta Lei
poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
§ 1º Se forem decorrentes de
falhas de projeto, as alterações de contratos de obras e serviços de engenharia
ensejarão apuração de responsabilidade do responsável técnico e adoção das
providências necessárias para o ressarcimento dos danos causados à
Administração.
(...)”
A jurisprudência
do STJ é firme em reconhecer o direito ao reequilíbrio. No REsp
1.258.970/RS, o Tribunal reconheceu o direito da empresa contratada a
reaver os custos decorrentes de atrasos na liberação de áreas para a execução
de obra pública, causados por omissão da Administração.
Segundo Diogenes Gasparini em (Direito Administrativo, Saraiva,
2018, 23ª ed., p. 574), "o reequilíbrio econômico-financeiro é uma
garantia de que o contratado não terá seu lucro comprometido por eventos que
fujam ao seu controle e que afetem a equação original do contrato. É a
manutenção do pacto de mútuo consentimento."
2.
Prejuízos Decorrentes da Proposta Inexequível: O Perigo da "Corrida para o
Fundo"
Muitas empresas,
seduzidas pela ambição de vencer, ofertam propostas que, em sua essência, são
irrealizáveis. A proposta inexequível, ou seja, aquela que não permite cobrir
os custos e ainda gerar lucro, é um dos principais problemas enfrentados pela
Administração Pública e pelo particular. O licitante que a apresenta, na
tentativa de vencer a concorrência a qualquer custo, acaba assinando a sua
própria sentença de morte. E a Administração, que a aceita, compromete a
execução contratual, expõe-se a riscos de inadimplemento, rescisão antecipada,
paralisação do serviço e necessidade de nova contratação emergencial, além de
violar o princípio do equilíbrio econômico-financeiro.
A Lei nº
14.133/2021, em seu art. 59, III, inclusive, estabelece que propostas com
valores "manifestamente inexequíveis" devem ser desclassificadas.
Não é demais
ressaltar que a inexequibilidade da proposta pode levar à rescisão unilateral do contrato pela Administração, com a aplicação
das sanções previstas no art. 156
da Lei nº 14.133/21.
O Tribunal de
Contas da União (TCU), em sua vasta jurisprudência, já abordou a questão da
inexequibilidade. No Acórdão nº 2258/2012-Plenário, o Tribunal destacou
que a verificação de inexequibilidade deve ser objetiva, baseada em elementos
técnicos, e não meramente subjetiva. A ementa do acórdão ressalta o seguinte:
“A desclassificação de proposta por
inexequibilidade deve ser objetivamente demonstrada, a partir de critérios
previamente publicados, devendo, ainda, ser franqueada a oportunidade de cada
licitante defender a sua proposta, antes da adoção da medida.” (Acórdão
2528/2012-Plenário, Relator: André de Carvalho)
Assim se
manifesta Marçal Justen Filho:
“O tema comporta uma ressalva prévia sobre a
impossibilidade de eliminação de propostas vantajosas para o interesse sob
tutela do Estado. A desclassificação por inexequibilidade apenas pode ser
admitida como exceção, em hipóteses muito restritas. O núcleo da concepção ora
adotada reside na impossibilidade de o Estado transformar-se em fiscal da
lucratividade privada e na plena admissibilidade de propostas deficitárias.
No entanto, essa orientação
deve ser entendida em termos. Existe determinação legislativa explícita que
exige a desclassificação das propostas cujo valor não seja suficiente para
assegurar a satisfação dos custos inerentes à sua execução.” (Comentários à Lei de Licitações e Contratos
Administrativos, 18ª ed., 2019, editora Revista dos Tribunais, p. 1101) (grifos nossos)
3. Falha na
Fiscalização e a Baixa Qualidade na Execução
A negligência na
fiscalização da execução contratual é uma das maiores falhas que podem levar a
uma cascata de prejuízos. A fiscalização, que deveria ser um processo contínuo
e rigoroso, muitas vezes é tratada como uma formalidade, permitindo que o
contratado preste serviços ou forneça bens de baixa qualidade.
A falta de
fiscalização pode resultar na aceitação de produtos ou serviços que não atendem
às especificações do edital, gerando um prejuízo direto à Administração. O art.
117 da Lei nº 14.133/21 estabelece que a execução do contrato deverá ser
acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração, mas não basta
a sua nomeação. É preciso que a fiscalização seja efetiva.
O Tribunal de
Contas da União (TCU) assim se
manifestou em relação a determinado caso concreto:
“40. Além disso, a correta fiscalização dos
pagamentos parcelados protege a Administração contra inadimplementos
acidentais, duplicidades de pagamento, ou mesmo fraudes, que podem ser mais
difíceis de detectar em contratos com múltiplas parcelas. Também permite que o
órgão identifique eventuais riscos de inadimplência futura por insuficiência de
dotação orçamentária ou por conflito com outros compromissos financeiros
assumidos. Esse controle exige, portanto, a integração entre o setor
responsável pela gestão contratual e as unidades de orçamento, finanças e
contabilidade, de modo a garantir que os pagamentos ocorram dentro dos limites
legais e das disponibilidades financeiras do órgão público. A ausência dessa fiscalização atenta contra os princípios da eficiência, do
controle interno e da boa governança pública, podendo ensejar responsabilização
do agente público por omissão ou falha na condução contratual.” (Acórdão 1717/2025
– Plenário, Relator: Ministro Jorge Oliveira)
A doutrina de Celso
Antônio Bandeira de Mello em "Curso de Direito Administrativo"
(Malheiros, 2019, 34ª ed., p. 651) aponta que "a fiscalização do contrato
administrativo é um dever-poder da Administração Pública, que deve ser exercido
com rigor, de modo a garantir que o objeto contratado seja executado conforme
as especificações e os padrões de qualidade exigidos."
4. Riscos
Trabalhistas: A Responsabilidade Subsidiária e Solidária
Muitas empresas que
participam de licitações subcontratam serviços ou mão de obra. No entanto, a
negligência na seleção e fiscalização dessas subcontratadas pode levar a sérios
prejuízos trabalhistas, principalmente em um cenário de responsabilidade
subsidiária ou, em casos mais graves, solidária da Administração.
A principal
diferença entre responsabilidades solidária e subsidiária reside no fato de que
na primeira vários devedores respondem pela mesma dívida, sem a necessidade de
se observar uma ordem de preferência, e o credor pode cobrar qualquer um deles
pela totalidade da dívida. Já a responsabilidade subsidiária envolve um devedor principal que
responde primeiro, e apenas se ele não cumprir a obrigação é que um segundo
devedor, chamado de subsidiário, será acionado para pagar a dívida.
O Tribunal
Superior do Trabalho (TST), por meio da Súmula nº 331, pacificou o
entendimento de que a responsabilidade da Administração Pública é subsidiária
em relação às obrigações trabalhistas da empresa contratada, desde que
comprovada sua conduta culposa na fiscalização do contrato.
A Súmula nº 331,
V, do TST é taxativa: "Os entes integrantes da Administração Pública
direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV,
caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei nº
8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das
obrigações contratuais e legais da contratada como empregadora. A aludida
responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas
assumidas pela empresa regularmente contratada."
A falha na
fiscalização não é apenas um problema administrativo, mas uma falha que pode
levar a um litígio judicial e a condenação do ente público.
A doutrina de Alexandre
Mazza em sua obra "Manual de Direito Administrativo"
(Saraiva, 2022, 12ª ed., p. 645) ressalta que "a responsabilidade subsidiária
da Administração Pública, consagrada pela Súmula 331 do TST, não é automática.
É preciso que se demonstre a culpa in vigilando, ou seja, a negligência
da Administração na fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas da
empresa contratada."
5.
Contratação Emergencial sem Justificativa Plausível: O Atalho que Leva ao
Abismo
A contratação
emergencial, prevista no art. 75, VIII, da Lei nº 14.133/21, é uma
ferramenta excepcional, a ser usada apenas em situações que coloquem em risco a
segurança de pessoas, obras, bens, serviços ou que comprometam a continuidade
do serviço público. No entanto, o uso indevido dessa modalidade, muitas vezes,
é resultado de uma licitação mal planejada ou fracassada.
A rescisão de um
contrato, seja por culpa da contratada ou da Administração, pode criar uma
situação de emergência. A contratação emergencial, nesse caso, é uma
consequência do erro, e não a causa. O problema surge quando a emergência é
forjada ou quando a Administração não se planejou para a eventualidade,
recorrendo ao contrato emergencial sem a devida justificativa.
O TCU, no Acórdão
nº 1717/2022-Plenário, é categórico ao afirmar que:
“38. Oportuno destacar que a inteligência do art.
24, inciso IV (atual art. 75, VIII, da
Lei 14.133/2021), da Lei de Licitações e Contratos possivelmente desejava
coibir os gestores públicos do uso [abusivo] de contratações emergenciais por
dispensa de licitação devido a situações de emergência provocadas até mesmo por
sua própria inépcia, negligência, desídia administrativa, falha de planejamento
ou má gestão, gerando, assim, a 'situação de emergência fabricada'. Repise-se
que, caso não fosse necessária a real situação de emergência ou o real estado
de calamidade pública, decretado por ente federativo com a competência dada por
força normativa, qualquer agente público poderia invocar o inciso IV do art. 24
da Lei 8.666/1993 para realizar contratações por dispensa de licitação sem a devida
fundamentação.” (Acórdão 1717/2022 – Plenário, Ministro Jorge Oliveira)
Para Gustavo
Henrique Justino de Oliveira em sua obra "Direito Administrativo
Sancionador" (Saraiva, 2020, 5ª ed., p. 211), "a contratação
emergencial é uma exceção à regra geral da licitação, e sua aplicação deve ser
rigorosamente justificada, sob pena de nulidade do ato e de responsabilização
dos agentes públicos. A emergência deve ser real e imprevisível, e não pode ter
sido criada pela desídia ou falta de planejamento da Administração."
6.
Prejuízos Decorrentes da Judicialização de Controvérsias: O Custo do Litígio
A judicialização de
controvérsias decorrentes de contratos administrativos é um dos maiores
prejuízos, tanto para a Administração quanto para a empresa. A falta de um
diálogo efetivo, de um edital claro e de uma fiscalização competente leva as
partes a buscarem o Poder Judiciário para resolver seus problemas.
A judicialização
gera custos financeiros com honorários advocatícios, custas processuais e, em
caso de derrota, o pagamento de indenizações. Além disso, o tempo do processo
judicial prolonga a incerteza e pode comprometer a continuidade de um serviço
público essencial. Os arts. 151 a 154 da Lei nº 14.133/21 preveem a
possibilidade de adoção de meios alternativos de solução de controvérsias, como
a conciliação e a mediação, mas a falta de planejamento e a má-fé das partes
podem inviabilizar essa solução.
A jurisprudência
do STJ é repleta de casos de judicialização de contratos administrativos,
evidenciando o quão comum se tornou a busca pela solução judicial. No REsp
1.749.569/RJ, o Tribunal discutiu a validade de uma cláusula de reajuste
contratual em um contrato administrativo, ressaltando que "as cláusulas
contratuais devem ser claras e objetivas, de modo a evitar a judicialização de
controvérsias e a insegurança jurídica das partes."
Maria Sylvia
Zanella Di Pietro em "Direito Administrativo"
(Atlas, 2021, 34ª ed., p. 621) ressalta que "a judicialização dos
contratos administrativos é o reflexo de um problema maior: a falha no
planejamento e na gestão pública. A Administração, ao não agir com a devida
cautela na fase de licitação e na execução do contrato, cria um ambiente
propício para o litígio."
7.
Prejuízos Financeiros Decorrentes de Multas e Impedimento de Licitar: A Marca
da Inidoneidade
A inexecução total
ou parcial do contrato, bem como o descumprimento de cláusulas essenciais,
acarreta a aplicação de sanções administrativas. Multas contratuais, além de
penalidades mais graves como o impedimento de licitar, são o preço da
negligência.
O art.
156 da Lei nº 14.133/21 prevê um rol de sanções, desde advertência
até a declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração
Pública. A aplicação dessas sanções exige um devido processo legal, com direito
à ampla defesa e ao contraditório. O inciso III do Art. 87 da Lei nº
8.666/93 previa a suspensão temporária de participação em licitação e
impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois)
anos. A Lei nº 14.133/21 aprofundou as sanções, com o Art. 156, § 4º,
estabelecendo o impedimento de licitar e contratar em âmbito federal, estadual,
distrital e municipal pelo prazo máximo de 3 (anos) anos.
A jurisprudência do
Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), consubstanciada na Apelação
Cível nº 0003013-17.2013.4.01.3800, confirmou a legalidade da aplicação de
multa e suspensão do direito de licitar a uma empresa que descumpriu cláusulas
contratuais. O acórdão ressaltou: “A aplicação das sanções previstas na lei
de licitações e contratos administrativos decorre do poder-dever da
Administração de fiscalizar e garantir o cumprimento do pactuado, sendo medida
necessária para assegurar o interesse público.”
Jessé Torres
Pereira Junior em sua obra "Comentários à Lei de
Licitações e Contratos Administrativos" (Renovar, 2018, 11ª ed., p.
892) afirma que "a aplicação de sanções administrativas, embora pareça uma
medida de punição, é, na verdade, um instrumento para a manutenção da ordem e
do equilíbrio na relação contratual administrativa. A punição, quando justa,
serve de exemplo e desestimula a má conduta."
8. Redução
da Credibilidade da Empresa: O Custo Oculto do Prejuízo
Além das sanções
formais, os erros na licitação e na execução do contrato geram um prejuízo
invisível, mas devastador: a perda de credibilidade e reputação no mercado. Uma
empresa que não cumpre seus contratos, que é alvo de sanções ou que está
envolvida em litígios, é vista com desconfiança por clientes, fornecedores e
parceiros.
A reputação é um
ativo intangível. Uma vez manchada, pode levar anos para ser recuperada. No
mercado privado, uma empresa que perde a credibilidade não consegue mais fechar
novos contratos. No setor público, a situação é similar: embora possa
participar de licitações, a má reputação pode ser um fator decisivo na decisão
da Administração em não contratar novamente. O art. 68 da Lei nº 14.133/2021
exige a comprovação de regularidade fiscal e trabalhista. Uma empresa com
problemas judiciais pode ter sua regularidade afetada, inviabilizando sua
participação em novos certames.
A Administração deve
redobrar a atenção na fase de habilitação e se valer de mecanismos de due
diligence para avaliar a idoneidade das empresas concorrentes. A análise da
capacidade técnica e econômico-financeira de uma empresa não deve se restringir
aos documentos formais, mas também incluir a avaliação de seu histórico de
desempenho e reputação.
9. Conclusão
A licitação é o
ponto de partida de uma jornada contratual que, se bem planejada, tem tudo para
ser bem-sucedida. Os prejuízos decorrentes dos erros na fase de licitação são a
prova de que a Administração deve agir com a máxima diligência, e as empresas
devem ser realistas em suas propostas. A transparência, a honestidade e o
planejamento são os pilares para evitar os erros que levam ao prejuízo. O
contrato, no final das contas, é um reflexo do edital. Se o edital é uma bagunça,
o contrato será um caos.
Um edital falho, a
insuficiência de exigências de qualificação econômico-financeira e capacidade
técnica, uma proposta inexequível ou deficiente, e, posteriormente, a ausência
de fiscalização ou a negligência na escolha dos parceiros são como vírus que se
instalam no corpo do contrato e o levam à falência. A solução para esses
problemas reside no planejamento meticuloso, na transparência das ações e na
responsabilidade de todos os envolvidos.
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