1. Introdução
Em meio à complexa
arena das licitações públicas, a estratégia de precificação de um concorrente
que, por vezes, beira a inexequibilidade, emerge como um desafio tático e
jurídico de alta complexidade para qualquer empresa séria e competitiva. A
primeira reação, a frustração, é natural, mas a resposta deve ser cirúrgica e
técnica, fundamentada em uma compreensão aprofundada do sistema legal
brasileiro. Não se trata de uma batalha de preços, mas de uma guerra de
estratégia e de conformidade legal.
Por se tratar de um
mercado competitivo, a tentação de reduzir preços para ganhar licitações ou
clientes pode ser irresistível. No entanto, quando um concorrente adota
preços abaixo do custo, isso pode configurar dumping comercial, venda
predatória ou até mesmo fraude à concorrência. Para o particular,
essa prática não é apenas uma ameaça econômica, mas também um risco jurídico,
pois pode mascarar ilegalidades como sonegação fiscal, trabalho informal ou
manipulação de editais.
Como reagir? A
resposta está em uma combinação de estratégias
defensivas (judiciais e administrativas) e estratégias ofensivas (diferenciação de mercado e compliance robusto).
2. Identificando
a Prática Ilegal: Quando o Preço Baixo é Fraude
Nem todo preço
agressivo é ilícito, mas há situações em que a concorrência desleal se disfarça
de "boa oferta". O Código de Defesa da Concorrência (Lei nº
12.529/2011) e a Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) estabelecem limites:
A) Dumping
e Venda Predatória (Art. 36, §3º, XV, da Lei 12.529/2011)
"Constitui infração da ordem econômica... III – vender mercadoria
ou prestar serviços injustificadamente abaixo do preço de custo;"
“Art.
36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa,
os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam
produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
(...)
§ 3º As seguintes condutas, além de
outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste
artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica:
(...)
XV - vender mercadoria ou prestar
serviços injustificadamente abaixo do preço de custo;
(...)”
Se um concorrente
pratica preços abaixo do custo
médio de forma sistemática, isso pode caracterizar conduta
predatória, visando eliminar rivais para depois dominar o mercado.
Jurisprudência
recente:
* STJ, REsp
1.938.828/SP (2021), Rel. Min. Nancy Andrighi:
"A prática de preços predatórios exige demonstração de intenção
anticompetitiva e capacidade de recuperação posterior dos preços, sob pena de
configurar mera competição agressiva."
B) Fraude
em Licitações (Art. 337-F do Código Penal)
“Art. 337-F. Frustrar
ou fraudar, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente
da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo
licitatório:
Pena -
reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa.”
Constitui fraude à licitação oferecer preço ou vantagem incompatível
com o mercado, de forma a comprometer a execução do contrato.
Se um concorrente
vence sucessivas licitações com preços irrisórios e depois não cumpre o contrato (ou pede
aditivos), isso pode configurar fraude.
Jurisprudência
recente:
*
TCU, Acórdão 803/2024, Plenário, Rel. Min. Benjamin Zymler:
"Para
mitigar o risco moral relacionado à inexequibilidade de propostas, os órgãos
responsáveis pelas licitações devem implementar procedimentos rigorosos de
avaliação, incluindo análise detalhada dos preços, da capacidade técnica e
financeira dos licitantes. Além disso, a transparência, a aplicação consistente
de penalidades e a revisão cuidadosa das propostas são essenciais para garantir
a integridade do processo licitatório e evitar práticas inadequadas."
3. Estratégias
de Defesa: Como Agir Judicial e Administrativamente
A)
Impugnação Administrativa (Lei 14.133/2021, art. 165, I, “b”)
Se você suspeita
de preço irreal, pode impugnar a proposta do concorrente no
prazo de 3 dias úteis após a abertura dos envelopes.
B) Ação
Judicial por Concorrência Desleal (Lei nº 9.279/1996, art. 195)
Se o concorrente
usa trabalho informal, sonegação ou fraude fiscal para baixar
custos, uma ação cível pode exigir indenização por perdas e danos.
Jurisprudência
recente:
* TJSP, Apelação Cível 1001239-11.2020 (2022), Rel. Des. Ricardo Negrão:
"A prática de preços abaixo do custo, quando associada a condutas
ilícitas como sonegação fiscal, configura concorrência desleal e gera direito a
reparação."
C) Denúncia
ao CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica)
Se a prática
for sistemática e distorciva do mercado, o CADE pode investigar e
aplicar multas (Lei 12.529/2011, art. 38).
4.
Estratégias Ofensivas: Como Vencer sem Baixar o Preço
A)
Diferenciação por Qualidade e Compliance
Empresas que
investem em:
* Certificações (ISO, ESG)
* Transparência fiscal e trabalhista
* Tecnologia e eficiência operacional
Conseguem
justificar preços mais altos com valor agregado.
B)
Parcerias Estratégicas e Consórcios
Se o problema
é escala, formar consórcios (Lei 14.133/2021, art.
15) pode equilibrar a disputa.
C)
Judicialização Estratégica
Se o concorrente
age de má-fé, uma ação declaratória de ilegalidade pode inibir
suas práticas.
D) Medidas Administrativas
No universo das licitações, especialmente na modalidade pregão,
muitos acreditam que o único caminho para a vitória é reduzir o preço ao limite
da exequibilidade. Trata-se de um equívoco estratégico. A competitividade real
não se constrói apenas no valor final, mas na construção
de vantagens competitivas legítimas e juridicamente seguras.
O
fornecedor que deseja vencer sem sacrificar margens deve investir em quatro
pilares: (1) Planejamento, conhecendo profundamente o
edital, os critérios de julgamento e as margens praticadas no mercado; (2) Diferenciação técnica, oferecendo soluções que
atendam com precisão às exigências da Administração, minimizando riscos e
custos futuros; e (3) Eficiência documental e
jurídica, evitando desclassificações e inabilitações por falhas
formais — armadilha comum entre concorrentes despreparados; (4) Uso do recurso administrativo em face
da inexequibilidade de preços aparente. Sobre esse aspecto, vide os nossos “O Menor Preço Sempre Vence?” e “Você sabia que a inexequibilidade em licitações é apenas um indício, não umacerteza?”.
Além disso, é essencial dominar as
oportunidades previstas na legislação, como benefícios para
micro e pequenas empresas (LC nº 123/06), margens de preferência e critérios de
desempate, utilizando-os estrategicamente. Em muitos casos, a vitória não
decorre de ser o mais barato, mas de ser o mais confiável,
consistente e juridicamente irretocável.
5. A
Sedução do Preço Vil e o Princípio da Economicidade
O licitante que
opera com preços "lá embaixo" — o que no jargão jurídico pode ser
classificado como preço vil ou inexequível — opera em uma zona cinzenta, por
vezes buscando obter a vitória no certame a qualquer custo, mesmo que isso
implique o posterior descumprimento do contrato ou a sua renegociação. A
Administração Pública, por sua vez, tem o dever de zelar não apenas pelo menor
preço, mas pelo preço justo, que assegure a plena execução do contrato. É aqui
que entra o princípio da economicidade, que não se confunde com o mero
economicismo.
O princípio da
economicidade, tal como moldado pela doutrina e pela jurisprudência, não autoriza a contratação de propostas
que, embora de menor valor, possam comprometer a qualidade do serviço, a
segurança da obra ou o fornecimento do bem. Afinal, uma contratação a preço
inexequível resultará, inevitavelmente, em custos futuros ainda maiores para a
Administração — seja pela necessidade de rescisão contratual, seja pela
recontratação, muitas vezes por valores mais altos e com o consequente atraso
na entrega.
6. A Linha
Tênue entre o Preço Competitivo e o Preço Inexequível: A Sindicância do Preço
O ponto central da
sua defesa não é simplesmente afirmar que o preço do concorrente está baixo
demais. Isso seria uma alegação subjetiva e, portanto, fraca. A sua tese deve
ser construída sobre a demonstração objetiva de que o preço ofertado é
materialmente inexequível.
A Lei nº
14.133/2021 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos) oferece ferramentas
poderosas para essa sindicância. O artigo 59 da referida lei estabelece
critérios para a verificação da exequibilidade das propostas. A seguir,
transcrevo a redação completa do artigo 59, que é a sua principal arma nesse
cenário:
Lei nº 14.133/2021,
art. 59:
“Art. 59. Serão desclassificadas as propostas
que:
I - contiverem vícios insanáveis;
II - não obedecerem às especificações técnicas pormenorizadas no edital;
III - apresentarem preços inexequíveis ou permanecerem acima do
orçamento estimado para a contratação;
IV - não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela
Administração;
V - apresentarem desconformidade com quaisquer outras exigências do
edital, desde que insanável.
§ 1º A verificação da conformidade das propostas poderá ser feita exclusivamente
em relação à proposta mais bem classificada.
§ 2º A Administração poderá realizar diligências para aferir a
exequibilidade das propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada,
conforme disposto no inciso IV do caput deste artigo.
§ 3º No caso de obras e serviços de engenharia e arquitetura, para
efeito de avaliação da exequibilidade e de sobrepreço, serão considerados o
preço global, os quantitativos e os preços unitários tidos como relevantes,
observado o critério de aceitabilidade de preços unitário e global a ser fixado
no edital, conforme as especificidades do mercado correspondente.
§ 4º No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas
inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco
por cento) do valor orçado pela Administração
§ 5º Nas
contratações de obras e serviços de engenharia, será exigida garantia adicional
do licitante vencedor cuja proposta for inferior a 85% (oitenta e cinco por
cento) do valor orçado pela Administração, equivalente à diferença entre este
último e o valor da proposta, sem prejuízo das demais garantias exigíveis de
acordo com esta Lei.”
Note que a
exequibilidade se tornou o foco principal do dispositivo. A lei, em um passo à
frente da antiga Lei nº 8.666/93, que era mais vaga nesse ponto, estabelece um
critério mais objetivo. A exequibilidade não é apenas uma obrigação de o
concorrente demonstrar a viabilidade, mas uma obrigação da Administração de
sindicar a proposta.
Para o particular,
a estratégia é exigir, durante a fase recursal, a realização de diligências a
cargo da Administração, com vistas à apresentação, por parte do licitante que
tenha apresentado preço supostamente inexequível, de um memorial detalhado,
munido de cotações, planilha de custos e formação de preços, tabelas de preço
de insumos, notas fiscais, contratos celebrados com outros órgãos públicos,
convenções coletivas de trabalho e outras fontes verificáveis, demonstrando que
é matematicamente possível executar o objeto do contrato por aquele valor sem
infringir a legislação trabalhista, tributária ou sem incorrer em um prejuízo
brutal que inviabilizaria a continuidade da execução do objeto do futuro contrato.
7. A Força
da Jurisprudência: A Sindicância da Proposta na Prática
Nesse ponto, a
jurisprudência, em especial a do Tribunal de Contas da União (TCU), é a sua
aliada mais poderosa. O TCU tem uma longa tradição de fiscalizar e anular
certames em que a Administração Pública não realizou a devida diligência sobre
a exequibilidade de propostas. A jurisprudência mais recente reforça essa tese,
exigindo uma análise minuciosa por parte da comissão de licitação.
A pesquisa por
jurisprudência exata, com o termo "preço vil", "preço
inexequível" ou "exequibilidade de proposta", revela um
entendimento consolidado. O TCU, por exemplo, tem sido categórico em sua
posição.
Eis um exemplo:
“Acórdão TCU nº 1244/2018 - Plenário
Relator: MARCOS BEMQUERER
Órgão
Julgador: Plenário
Ementa: Representação. Pedido de medida cautelar.
Pregão eletrônico. Registro de preços para eventual contratação de serviços de
instalação/aquisição de materiais para sistemas de energia solar. Exigência injustificada
de certificações da associação brasileira de normas técnicas - ABNT. Orçamento
base elaborado sem prévia pesquisa de preços. Critérios de
inexequibilidade de preços com restrição ao caráter competitivo do
certame. Contratação por preços comparativamente elevados, em relação aos
valores pagos por outros órgãos da administração pública e à maioria dos lances
ofertados. Conhecimento. Procedência. Determinação para anulação do certame.
Ciência acerca das irregularidades detectadas."
Nesse acórdão, o
TCU anula uma licitação justamente por falhas na análise da proposta de preços,
demonstrando que o dever de sindicância da Administração é um requisito
essencial para a validade do certame. A Administração deve ir além da mera
formalidade, realizando uma verificação material dos preços ofertados.
Este acórdão
reitera a necessidade de uma "análise detalhada" das propostas. O TCU
não apenas anula o certame, mas orienta a Administração a aprimorar seus
procedimentos de análise, reforçando que a falha em analisar a exequibilidade é
um vício grave.
8. O Papel
do Direito Tributário na Proteção do seu Preço
Aqui, a análise se
aprofunda e transcende o Direito Administrativo. O preço de uma empresa não é
apenas a soma dos insumos e da mão de obra. Ele carrega uma carga tributária
que, se ignorada, pode inviabilizar a execução do contrato. O concorrente que
joga o preço "lá embaixo" muitas vezes o faz ignorando,
intencionalmente ou não, essa carga.
O seu memorial de
impugnação deve demonstrar que o preço do concorrente não consegue absorver os
custos com o ICMS, PIS, COFINS, IRPJ, CSLL, e outros tributos específicos do
setor, sem que a empresa incorra em sonegação fiscal. A Administração, ao
aceitar uma proposta inexequível sob essa ótica, estaria tacitamente pactuando
com uma possível ilegalidade fiscal, o que é inadmissível.
Essa é uma
perspectiva que eleva a sua defesa a um patamar superior, pois não se trata
mais apenas de uma disputa comercial, mas de uma questão de conformidade legal
e de interesse público.
9. Conclusão:
Não Caia no Jogo do Preço, Mude as Regras
A melhor proteção
contra concorrentes predatórios não é rebaixar seu preço, mas expor
suas ilegalidades e superá-los em qualidade e compliance.
Como dizia Sun Tzu: "A
suprema arte da guerra é subjugar o inimigo sem lutar."
Se um concorrente está ganhando licitações com preços impossíveis, ele não está sendo mais esperto—está apenas mais perto de uma investigação e, consequentemente, de uma sanção.
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