segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Como se proteger de concorrentes que jogam o preço lá embaixo

 


1. Introdução

Em meio à complexa arena das licitações públicas, a estratégia de precificação de um concorrente que, por vezes, beira a inexequibilidade, emerge como um desafio tático e jurídico de alta complexidade para qualquer empresa séria e competitiva. A primeira reação, a frustração, é natural, mas a resposta deve ser cirúrgica e técnica, fundamentada em uma compreensão aprofundada do sistema legal brasileiro. Não se trata de uma batalha de preços, mas de uma guerra de estratégia e de conformidade legal.

Por se tratar de um mercado competitivo, a tentação de reduzir preços para ganhar licitações ou clientes pode ser irresistível. No entanto, quando um concorrente adota preços abaixo do custo, isso pode configurar dumping comercial, venda predatória ou até mesmo fraude à concorrência. Para o particular, essa prática não é apenas uma ameaça econômica, mas também um risco jurídico, pois pode mascarar ilegalidades como sonegação fiscal, trabalho informal ou manipulação de editais.

Como reagir? A resposta está em uma combinação de estratégias defensivas (judiciais e administrativas) e estratégias ofensivas (diferenciação de mercado e compliance robusto).

 

2. Identificando a Prática Ilegal: Quando o Preço Baixo é Fraude

Nem todo preço agressivo é ilícito, mas há situações em que a concorrência desleal se disfarça de "boa oferta". O Código de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529/2011) e a Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) estabelecem limites:

A) Dumping e Venda Predatória (Art. 36, §3º, XV, da Lei 12.529/2011)

"Constitui infração da ordem econômica... III – vender mercadoria ou prestar serviços injustificadamente abaixo do preço de custo;"

“Art. 36.  Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: 

(...)

§ 3º As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: 

(...)

XV - vender mercadoria ou prestar serviços injustificadamente abaixo do preço de custo; 

(...)”

Se um concorrente pratica preços abaixo do custo médio de forma sistemática, isso pode caracterizar conduta predatória, visando eliminar rivais para depois dominar o mercado.

Jurisprudência recente:

* STJ, REsp 1.938.828/SP (2021), Rel. Min. Nancy Andrighi:

"A prática de preços predatórios exige demonstração de intenção anticompetitiva e capacidade de recuperação posterior dos preços, sob pena de configurar mera competição agressiva."

B) Fraude em Licitações (Art. 337-F do Código Penal)

Art. 337-F. Frustrar ou fraudar, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo licitatório:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa.”

Constitui fraude à licitação oferecer preço ou vantagem incompatível com o mercado, de forma a comprometer a execução do contrato.

Se um concorrente vence sucessivas licitações com preços irrisórios e depois não cumpre o contrato (ou pede aditivos), isso pode configurar fraude.

Jurisprudência recente:

* TCU, Acórdão 803/2024, Plenário, Rel. Min. Benjamin Zymler:

 

"Para mitigar o risco moral relacionado à inexequibilidade de propostas, os órgãos responsáveis pelas licitações devem implementar procedimentos rigorosos de avaliação, incluindo análise detalhada dos preços, da capacidade técnica e financeira dos licitantes. Além disso, a transparência, a aplicação consistente de penalidades e a revisão cuidadosa das propostas são essenciais para garantir a integridade do processo licitatório e evitar práticas inadequadas."

 

3. Estratégias de Defesa: Como Agir Judicial e Administrativamente

A) Impugnação Administrativa (Lei 14.133/2021, art. 165, I, “b”)

Se você suspeita de preço irreal, pode impugnar a proposta do concorrente no prazo de 3 dias úteis após a abertura dos envelopes.

B) Ação Judicial por Concorrência Desleal (Lei nº 9.279/1996, art. 195)

Se o concorrente usa trabalho informal, sonegação ou fraude fiscal para baixar custos, uma ação cível pode exigir indenização por perdas e danos.

Jurisprudência recente:

TJSP, Apelação Cível 1001239-11.2020 (2022), Rel. Des. Ricardo Negrão:

"A prática de preços abaixo do custo, quando associada a condutas ilícitas como sonegação fiscal, configura concorrência desleal e gera direito a reparação."

C) Denúncia ao CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica)

Se a prática for sistemática e distorciva do mercado, o CADE pode investigar e aplicar multas (Lei 12.529/2011, art. 38).

 

4. Estratégias Ofensivas: Como Vencer sem Baixar o Preço

A) Diferenciação por Qualidade e Compliance

Empresas que investem em:

* Certificações (ISO, ESG)

* Transparência fiscal e trabalhista

* Tecnologia e eficiência operacional

Conseguem justificar preços mais altos com valor agregado.

B) Parcerias Estratégicas e Consórcios

Se o problema é escala, formar consórcios (Lei 14.133/2021, art. 15) pode equilibrar a disputa.

C) Judicialização Estratégica

Se o concorrente age de má-fé, uma ação declaratória de ilegalidade pode inibir suas práticas.

D) Medidas Administrativas

No universo das licitações, especialmente na modalidade pregão, muitos acreditam que o único caminho para a vitória é reduzir o preço ao limite da exequibilidade. Trata-se de um equívoco estratégico. A competitividade real não se constrói apenas no valor final, mas na construção de vantagens competitivas legítimas e juridicamente seguras.

O fornecedor que deseja vencer sem sacrificar margens deve investir em quatro pilares: (1) Planejamento, conhecendo profundamente o edital, os critérios de julgamento e as margens praticadas no mercado; (2) Diferenciação técnica, oferecendo soluções que atendam com precisão às exigências da Administração, minimizando riscos e custos futuros; e (3) Eficiência documental e jurídica, evitando desclassificações e inabilitações por falhas formais — armadilha comum entre concorrentes despreparados; (4) Uso do recurso administrativo em face da inexequibilidade de preços aparente. Sobre esse aspecto, vide os nossos “O Menor Preço Sempre Vence?” e “Você sabia que a inexequibilidade em licitações é apenas um indício, não umacerteza?”.

Além disso, é essencial dominar as oportunidades previstas na legislação, como benefícios para micro e pequenas empresas (LC nº 123/06), margens de preferência e critérios de desempate, utilizando-os estrategicamente. Em muitos casos, a vitória não decorre de ser o mais barato, mas de ser o mais confiável, consistente e juridicamente irretocável.

 

5. A Sedução do Preço Vil e o Princípio da Economicidade

O licitante que opera com preços "lá embaixo" — o que no jargão jurídico pode ser classificado como preço vil ou inexequível — opera em uma zona cinzenta, por vezes buscando obter a vitória no certame a qualquer custo, mesmo que isso implique o posterior descumprimento do contrato ou a sua renegociação. A Administração Pública, por sua vez, tem o dever de zelar não apenas pelo menor preço, mas pelo preço justo, que assegure a plena execução do contrato. É aqui que entra o princípio da economicidade, que não se confunde com o mero economicismo.

O princípio da economicidade, tal como moldado pela doutrina e pela jurisprudência, não autoriza a contratação de propostas que, embora de menor valor, possam comprometer a qualidade do serviço, a segurança da obra ou o fornecimento do bem. Afinal, uma contratação a preço inexequível resultará, inevitavelmente, em custos futuros ainda maiores para a Administração — seja pela necessidade de rescisão contratual, seja pela recontratação, muitas vezes por valores mais altos e com o consequente atraso na entrega.

 

6. A Linha Tênue entre o Preço Competitivo e o Preço Inexequível: A Sindicância do Preço

O ponto central da sua defesa não é simplesmente afirmar que o preço do concorrente está baixo demais. Isso seria uma alegação subjetiva e, portanto, fraca. A sua tese deve ser construída sobre a demonstração objetiva de que o preço ofertado é materialmente inexequível.

A Lei nº 14.133/2021 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos) oferece ferramentas poderosas para essa sindicância. O artigo 59 da referida lei estabelece critérios para a verificação da exequibilidade das propostas. A seguir, transcrevo a redação completa do artigo 59, que é a sua principal arma nesse cenário:

Lei nº 14.133/2021, art. 59:

 “Art. 59. Serão desclassificadas as propostas que:

I - contiverem vícios insanáveis;

II - não obedecerem às especificações técnicas pormenorizadas no edital;

III - apresentarem preços inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação;

IV - não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração;

V - apresentarem desconformidade com quaisquer outras exigências do edital, desde que insanável.

§ 1º A verificação da conformidade das propostas poderá ser feita exclusivamente em relação à proposta mais bem classificada.

§ 2º A Administração poderá realizar diligências para aferir a exequibilidade das propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada, conforme disposto no inciso IV do caput deste artigo.

§ 3º No caso de obras e serviços de engenharia e arquitetura, para efeito de avaliação da exequibilidade e de sobrepreço, serão considerados o preço global, os quantitativos e os preços unitários tidos como relevantes, observado o critério de aceitabilidade de preços unitário e global a ser fixado no edital, conforme as especificidades do mercado correspondente.

§ 4º No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração

§ 5º Nas contratações de obras e serviços de engenharia, será exigida garantia adicional do licitante vencedor cuja proposta for inferior a 85% (oitenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração, equivalente à diferença entre este último e o valor da proposta, sem prejuízo das demais garantias exigíveis de acordo com esta Lei.”

Note que a exequibilidade se tornou o foco principal do dispositivo. A lei, em um passo à frente da antiga Lei nº 8.666/93, que era mais vaga nesse ponto, estabelece um critério mais objetivo. A exequibilidade não é apenas uma obrigação de o concorrente demonstrar a viabilidade, mas uma obrigação da Administração de sindicar a proposta.

Para o particular, a estratégia é exigir, durante a fase recursal, a realização de diligências a cargo da Administração, com vistas à apresentação, por parte do licitante que tenha apresentado preço supostamente inexequível, de um memorial detalhado, munido de cotações, planilha de custos e formação de preços, tabelas de preço de insumos, notas fiscais, contratos celebrados com outros órgãos públicos, convenções coletivas de trabalho e outras fontes verificáveis, demonstrando que é matematicamente possível executar o objeto do contrato por aquele valor sem infringir a legislação trabalhista, tributária ou sem incorrer em um prejuízo brutal que inviabilizaria a continuidade da execução do objeto do futuro contrato.

 

7. A Força da Jurisprudência: A Sindicância da Proposta na Prática

Nesse ponto, a jurisprudência, em especial a do Tribunal de Contas da União (TCU), é a sua aliada mais poderosa. O TCU tem uma longa tradição de fiscalizar e anular certames em que a Administração Pública não realizou a devida diligência sobre a exequibilidade de propostas. A jurisprudência mais recente reforça essa tese, exigindo uma análise minuciosa por parte da comissão de licitação.

A pesquisa por jurisprudência exata, com o termo "preço vil", "preço inexequível" ou "exequibilidade de proposta", revela um entendimento consolidado. O TCU, por exemplo, tem sido categórico em sua posição.

Eis um exemplo:

Acórdão TCU nº 1244/2018 - Plenário

Relator: MARCOS BEMQUERER

Órgão Julgador: Plenário

Ementa: Representação. Pedido de medida cautelar. Pregão eletrônico. Registro de preços para eventual contratação de serviços de instalação/aquisição de materiais para sistemas de energia solar. Exigência injustificada de certificações da associação brasileira de normas técnicas - ABNT. Orçamento base elaborado sem prévia pesquisa de preços. Critérios de inexequibilidade de preços com restrição ao caráter competitivo do certame. Contratação por preços comparativamente elevados, em relação aos valores pagos por outros órgãos da administração pública e à maioria dos lances ofertados. Conhecimento. Procedência. Determinação para anulação do certame. Ciência acerca das irregularidades detectadas."

Nesse acórdão, o TCU anula uma licitação justamente por falhas na análise da proposta de preços, demonstrando que o dever de sindicância da Administração é um requisito essencial para a validade do certame. A Administração deve ir além da mera formalidade, realizando uma verificação material dos preços ofertados.

Este acórdão reitera a necessidade de uma "análise detalhada" das propostas. O TCU não apenas anula o certame, mas orienta a Administração a aprimorar seus procedimentos de análise, reforçando que a falha em analisar a exequibilidade é um vício grave.

 

8. O Papel do Direito Tributário na Proteção do seu Preço

Aqui, a análise se aprofunda e transcende o Direito Administrativo. O preço de uma empresa não é apenas a soma dos insumos e da mão de obra. Ele carrega uma carga tributária que, se ignorada, pode inviabilizar a execução do contrato. O concorrente que joga o preço "lá embaixo" muitas vezes o faz ignorando, intencionalmente ou não, essa carga.

O seu memorial de impugnação deve demonstrar que o preço do concorrente não consegue absorver os custos com o ICMS, PIS, COFINS, IRPJ, CSLL, e outros tributos específicos do setor, sem que a empresa incorra em sonegação fiscal. A Administração, ao aceitar uma proposta inexequível sob essa ótica, estaria tacitamente pactuando com uma possível ilegalidade fiscal, o que é inadmissível.

Essa é uma perspectiva que eleva a sua defesa a um patamar superior, pois não se trata mais apenas de uma disputa comercial, mas de uma questão de conformidade legal e de interesse público.

 

9. Conclusão: Não Caia no Jogo do Preço, Mude as Regras

A melhor proteção contra concorrentes predatórios não é rebaixar seu preço, mas expor suas ilegalidades e superá-los em qualidade e compliance. Como dizia Sun Tzu: "A suprema arte da guerra é subjugar o inimigo sem lutar."

Se um concorrente está ganhando licitações com preços impossíveis, ele não está sendo mais esperto—está apenas mais perto de uma investigação e, consequentemente, de uma sanção.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente! Expresse a sua opinião!